A terra das aves
Da fogueira só restavam as cinzas e a lembrança. O sol brilhante cheirava agora a esperança, ou seria a flor com os seus cantos áfonos?! Não! Agora cantavam os pássaros. Um rio turbilhava ao longe, o vento soprava ao de leve. Um dia lindo como tantos outros.
-Segue o rio! - dizia a flor.
Deitou-se. As costas no chão quente impediam-no de sentir a realidade. Adormeceu à sombra de uma árvore. Sentia-se bem sem saber porquê. Talvez fosse dos pássaros que voavam à sua volta. Seriam abutres ou andorinhas?! Adormeceu de vez. Passaram-se horas. A sombra dava lugar a um calor sufocante. Abriu os olhos. O céu, de um azul limpo, sem nuvens, contornava a face de um jovem da sua idade.
-Não te quis acordar! - disse num tom suave.
-Quem és tu?! - perguntou pestanejando.
-Chamo-me Ricardo. E tu?
-Trabis. - Respondeu olhando em redor.
-Estás sozinho, não tens amigos?
-Desde criança que não tenho amigos. Só me tenho por companhia! - disse sem melancolia.
-Queres ser meu amigo?
-Amigo?! Mas eu nem te conheço!
-Não precisas! Não tenho maldade no coração. Vamos brincar?
-Brincar?! Já não brinco desde criança. - Disse o Trabis fixando uma pedra solta.
-Desde criança, desde criança! Aqui somos todos crianças, não há desconfianças. Agarra a minha mão!
-Vamos aonde?!
-Ao rio!
O rio corria veloz, como que com ânsia de alcançar o mar. Eles corriam com ânsia de chegar ao rio. Os outros corriam com ânsia de chegar a eles. O sol, esse esperava, calmo.
-Apresento-te os meus amigos. - Disse o Ricardo ofegante. -Este é o Filipe , este é o Gerson!
-Olá! Chamo-me Trabis.
-Então, tudo bem?! - Estenderam a mão à vez.
-Estavas à espera de ver mais gente? - Perguntou o Ricardo.
-Estava! Por acaso...
-Pois o problema é que os amigos vão e vêm. Já fomos muitos. Amanhã, quem sabe, seremos mais! Hoje somos quatro, e chegamos bem!
-Mas vocês não são meus amigos. Não vos conheço sequer.
-O que é a amizade para ti? - Interrompeu o Gerson.
-Amizade?! Amizade é um sentimento que inspira confiança, igualdade, partilha e compreensão!
-Ouve! - Disse o Ricardo - A amizade não nasce de uma relação. Não é uma flor que plantas no jardim, que regas e esperas para colher. Tu és amigo de alguém e esse alguém talvez seja teu amigo. Um amigo não é um espelho. Tu és amigo de quem quiseres, se o quiseres!
-Não é bem assim. - Disse o Gerson. - Aliás, não é nada assim! Amigos temos dois ou três numa vida. Tudo o resto são conhecidos, chama-lhe amigos se quiseres. Para mim, amigos dividem o pão que têm, assim como o fardo.
-Nada disso! - Cortou o Filipe.- Não me digas que nenhum daqueles que por aqui passaram e se foram era teu amigo?! Os amigos servem para as ocasiões, para os divertimentos. Para a mágoa temos a compaixão. Para a fome temos a solidariedade. Isso não é amizade. Amizade é andarmos juntos, curtirmos juntos!
-Curtir?! Chamas a isso curtir, dar as costas à faca. Já foste pisado poucas vezes sabes! - Defendeu-se o Gerson.
-Pisado és tu! - Retorquiu o Filipe incisivo.
-Não! Eu não me deixo pisar. Aliás, se me aleijam só me pisam uma vez. E isso não é maldade no coração.
-Oh! - Interrompeu o Ricardo.- Vamos discutir outra vez?
-Se me permitem, - disse o Trabis - a discutir é que a gente se entende. Os amigos discutem e daí nasce a compreensão, a partilha.
-Mas sem discussão... Não percebes... Sem maldades... Seríamos pássaros, crianças, sei lá... Amigos?!
-Não é típico do homem a bondade, mas as pessoas más também têm amigos! - Disse o Filipe.
-O tanas! O tanas é que têm! Não sou vosso inimigo, mas desculpem que vos diga, vocês são mesmo crianças. Não vêem nada. Vê-se bem que são daqui. - Disse o Gerson.
-Julgas-te diferente por não teres nascido na terra das aves? És daqueles que vêm e se vão? - Perguntou o Filipe num tom áspero.
-Sou diferente sou! Antes isso que igual! Detesto a rotina! Já tive rotina que chegue na minha vida!
-A quem o dizes! - disse o Trabis - Não queria que a amizade se transformasse numa rotina. A rotina mata, acredita!
-Sei bem! E acho que já sinto o cheiro a morte! Vou partir. Apodreçam mais a vossa amizade!
-Espera! Aonde vais! - Perguntou o Trabis esperançoso.
-Vou seguir o rio! Talvez até ao mar!
-Então espera que eu vou contigo!
-Vem, vem! Aproveitamos para nos conhecer!
Despediram-se dos pássaros com um olhar. Seguiram a favor da corrente e ao sabor do vento. Os seus longos cabelos negros dançavam em sincronia com as ondas, apontando para o lugar cobiçado, para o fruto proibido!
-Disseste à pouco que eras diferente? - Lançou os dados.
-Todos somos diferentes! Ou pelo aspecto, ou pelas ideias, ou pelos ideais. - Disse o Gerson apanhando-os.
-Então porque é que te zangaste?!
-Não me zanguei, apenas me desiludi, e ilusões já tive que chegue. Há anos que procuro uma amizade. Julguei por momentos que a encontrara. Errei.
-Mas onde é que eles falharam?
-Na compreensão!
-Percebeste então o que dizia?!
-Claro! Aliás, quem não sabe ouvir não pode falar! Eu escutei com atenção! Também és diferente, mesmo de mim, nem que seja pelo aspecto!
O Trabis sorriu pela segunda vez na sua vida.
-Falávamos da maldade e da diferença? - Sugeriu o Gerson - Pois eu digo-te... Não há nada de mal em não ser igual. É essa diferença que nos dá um objectivo. Lutar pela diferença! Se esse objectivo for controverso não deixa de ser natural e por isso há que lutar por ele e contra os diferentes, até os pratos da balança se equilibrarem. Quando formos iguais não haverá objectivos, não haverá vida, só rotina e sobrevivência.
-Fazes-me lembrar alguém que conheci há pouco!
-Eu sei de quem falas. Sei desde que te vi com essa flor. Conheci-o bem, por dentro e por fora. Aprendi muito com ele. Só tenho pena de não ter aprendido mais. Faltou-me a partilha.
-Pois eu sinto o mesmo. Não o conheci tão bem quanto desejava. No entanto sinto que lhe devo a vida. É estranho!
-Talvez não. Para todas as dúvidas existe uma resposta. Talvez lhe devas mesmo a vida, ou então conheceste-o mesmo bem!
-Lá estás tu! Falas com lógicas que no global não têm lógica!
-Se uma teoria não parecer lógica há que ter em conta que o nosso modo de pensar também não o seja. Acredita que este mundo tem lógicas a mais, e que no global se refutam umas às outras.
-Então dás-me razão quando à tua falta de lógica?!
-Quando exponho uma teoria não pretendo refutar algo. Primeiro ponho a teoria em vosso julgamento e então, se a vosso ver, que eu espero ser sincero e o menos céptico e ignorante possível, estiver correcto, aí a poderei por em causa. Foi o que aconteceu! Resumindo, sim, dou-te razão!
-Agora trocaste-me as voltas. Vais depressa demais!
-Seria subestimar-te se abrandasse, se te facultasse esses meios!
-Espera, vamos sentar-nos à borda do rio.- Sugeriu o Trabis.
Descalçaram-se e molharam os pés para refrescar as ideias.
-Tens umas ideias muito fortes, muito marcadas, tens convicção no que dizes. Aprecio a iniciativa. Foi ela que me deu forças. - Disse o Trabis.
-Li uma vez um livro escrito pelo marinheiro que falava exactamente disso. Era no terceiro capítulo. Dizia assim:
"Quanto mais forte for a luz das tuas ideias, mais escuras serão as sombras. Mas se não existir luz, então só sombras existirão. No entanto, se não houver obstáculos no teu caminho, terás um mundo iluminado à tua frente. Mas quem é que quer viver ao sol?! Por detrás de cada obstáculo está a sombra que te permite descansar e ganhar forças para continuar o teu caminho. Mas quem é que quer percorrer o infinito quer do espaço quer do tempo?!
A areia na qual caminhamos pode transformar-se num lamaçal. Quando as forças faltarem seremos apenas mais um obstáculo sob o qual outros descansarão. Sendo assim, enquanto houver diversidade de ideias existirão obstáculos. Estes servirão para recuperar forças (sombra) ou para dificultar a travessia. A travessia para a perfeição. Perfeição?!"
-O marinheiro era um perfecionista?!
-O mar é inconstante e irregular! É imperfeito o navegar!
-Aposto que na terra dos lagos ele seria o que queria!
-Ser perfeito?! Caminhar a direito?! Qual era a graça?! Com a rotina cairia em desgraça.
-Mas ele não quer ou não pode?
-Não pode nem quer. Tenta sem intenção!
-Mais me parece uma contradição!
-Um espelho é uma contradição! Chega de conversa, temos muito que andar.
-Vamos aonde?!
-A caminho do deserto! Mas primeiro vou levar-te à terra onde nasci.
-Onde nasceste?
-Na terra das nuvens!
-E como vamos até lá?!
-Vamos de barco, por este rio que sobe. É uma das viagens mais excitantes. Vamos que o sol não espera.
-Mas qual barco?! Vieste de barco?!
-Claro! São dez dias contra a maré, dez minutos a favor dela!
-Porque não vieste a pé?
-A pé?! Só se fosse a rebolar! Anda, sobe, já vais perceber!
A serra erguia-se como uma parede que nos faz frente. Não demorou muito até se agarrarem ao barco com unhas e dentes. Cambalearam como que entorpecidos de prazer durante dez minutos, que mais pareceram dez dias, até que subitamente regressaram à posição vertical.
-Fuckin, - disse o Gerson tentando-se acalmar -hoje o rio estava-lhe a dar.
O Trabis permanecia mudo, engolindo em seco como que engasgado, fixando as suas mãos estranhamente brancas que esmagavam a proa do barco.
-Não vais vomitar, pois não?!
-Fizeste isto a descer?! -Disse pasmado.
-Contra a maré ?! Já! Vais-te passar é do lado de lá da montanha, quando descermos! Aí sim! Já estou a imaginar! Mas para já vamos dar uma volta.
Largaram a âncora. O Trabis ajeitou a flor que trazia ao peito que mais parecia uma rosa em botão que um malmequer! Suspiraram pela última vez.
-Cá estamos! Esta é a terra das nuvens, a terra das musas, a terra do sexo! -Disse o Gerson estendendo a mão ao horizonte.