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O MARGINAL!

 
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O sol a pino espremia-se pelas frestas da janela do barraco à beira do abismo de dejetos e lixo amontoados desordenadamente, os seus raios clareavam os recantos do pobre e fétido aposento unitário. Sobre um estrado carcomido pelos cupins, Juvenal jazia em decúbito dorsal, com estiletes pastosos lhe escorrendo pela comissura dos lábios em direção das suas orelhas, o seu ventre, em ritmo irregular, ondulava em compressão e descompressão fazendo as bagas de suores oscilarem ao redor do seu umbigo profundo, um leve ronronar escapava-lhe oprimido pelas suas fauces e forçado pelo arremedo de travesseiro, compilado de retalhos de panos do lixo circundante.
Uma cueca bege, meio puída, pairava retorcida, sobre a sua genitália por onde lhe escapavam fios de cabelos retorcidos.
Junto da cabeceira do seu catre estava um caixote coberto com um trapo amarelecente emaranhando cigarros, sobre ele: um cinzeiro de pedaços de bambu com “guimbas” entremeadas de cinzas, uma chave e um revólver velho de calibre 38, semicarregado com três cartuchos intactos e iguais número de cápsulas deflagradas. Tal caixote servia, quando desocupado, de cadeira, em complemento com o estrado, nos momentos de escassas visitas que recebia.

Moscas e baratas vicejavam pelo aposento ocupando os espaços, tanto aéreos quanto terrestres, à procura de resíduos de comida, dificilmente encontrados dado à miserabilidade do cômodo, e, como em um comum acordo, os insetos iam diretos ao corpo de Juvenal, alimentando-se do seu suor gotejante e da baba semi-solidificante, que lhe escapava dos lábios. A disputa era ferrenha com cada tipo de inseto usando às suas armas, ora, as asas dos mosquitos escaramuçavam as baratas, ora, as antenas delas e, também, movimentos bruscos, esvoaçavam os mosquitos da presa indefesa pelo sonho etílico.

O dia ia prosseguindo no seu conta-gotas horário Limalhando os minutos e segundos e, acompanhando a seqüência do sol que destacava às suas fazes de iluminação e calor, dessa forma, a manhã deu lugar à tarde e esta à noite.

Preparando-se para clarear, esquentar e nortear no dia seguinte, o astro-rei abandonou Juvenal por algumas horas, deixando-lhe uma sombra como aviso de que retornaria na manhã seguinte. Já de madrugada, a mudança de temperatura precipitou o acordar de Juvenal que, após alguns meneios desconexos, levantou-se cambaleando e, lavou o rosto com um copo de água, de uma bilha colocada no canto do quarto. Uma fome atroz lhe corroia as entranhas, anunciando falta de alimento por mais de vinte e quatro horas; desde, a véspera não comera nada de sólido por ter se empanturrado de cachaça e cerveja num solitário botequim na rua de “baixo”, no sopé do morro, onde residia enclausurado e solitário.

Desperto, puxou uma cortina feita com um lençol, devassando um nicho na parede, que lhe servia de guarda-roupas e de outros pertences, pegou um uniforme vistoso e, contrastante com tudo em volta, e com a vizinhança. Com passos vacilantes, dirigiu-se a uma torneira num canto do quarto, e tomou um rápido “banho de aspersão”, respingando água por todos os lados e, tendo aos pés, uma espécie de tanque um pouco abaixo do rés do piso de terra batida. Secou-se rapidamente com uma toalha encardida, proveniente de um saco de farinha de trigo.

Trocou a cueca por um calção de “zuarte” e vestiu o uniforme marrom, colocando o cinto com um coldre e, neste, o revólver. Sobre o uniforme impecável em limpeza e aparência, vestiu uns trapos comuns na vizinhança. Após fechar a porta com uma taramela, através de um buraco à altura do que seria a fechadura, saiu para a madrugada atravessando as vielas tortuosas e ladeadas por incontáveis barracos iguais ao seu, sendo cumprimentado por vários indivíduos de feições macambúzias e atitudes gestuais suspeitas, como se ali estivessem, permanentemente, de atalaia à espera de uma vítima em potencial ou de quaisquer desafios para a agressão iminente.

Pouco tempo depois, chegou ao mesmo botequim, onde estivera bebendo na tarde anterior, após cumprimentar o dono, dirigiu-se para um reservado do lado de dentro do balcão de tijolos, onde deixou os trapos e ressurgiu brilhantemente uniformizado. Assim, já no começo da manhã, ganhou a rua de baixo, após uma pouca conversa sobre banalidades com o comerciante, ao qual, pagava-lhe pelo uso daquele recinto para camuflar a sua verdadeira profissão, numa selva de maus elementos como era o morro onde residia.

Foi engolido pela metrópole ululante de pessoas bem vestidas e apressadas pelas avenidas, umas, em veículos e, a maioria, a pé, em acotovelamentos constantes sem nem ao menos repararem nos esbarrões já costumeiros entre todos. Em Juvenal ninguém esbarrava, por que o uniforme atuava como um campo de força inibidor e controlador dos mais apressados, a cada passo dado, ele sentia-se mais senhor de si e mais valoroso, tal e qual, um soldado indo para uma batalha, tendo na sua retaguarda próxima, um efetivo infinitamente superior ao do inimigo.

Após alguns quarteirões, chegou a uma fachada de um prédio monumental com escadarias de mármore de “Carrara” e, uma ampla entrada ladeada por portões de aço de grosso calibre, tudo à disposição do público que para ali afluía célere, em sua maioria com trajes caros e vistosos.

Juvenal penetrou num enorme salão com balcões curvos de vidros transparentes, indo direto para uma cabina exígua, porém, com visão ampla de todos os balcões e dos respectivos caixas, além do salão propriamente dito e da porta principal. Trocou de lugar com um seu colega e assumiu a função de guarda ou vigilante bancário, tomando, em seguida, um pequeno lanche, ali à sua disposição, lanche este o primeiro em vinte e quatro horas e, que tinha o sabor de “quero mais!”.

Enquanto o expediente transcorria sem alterações, ficou a pensar na sua situação e nos “dois mundos” onde vivia alternadamente, um, durante o seu trabalho, cheio de limpeza, dinheiro, educação, respeito e beleza, o outro, vazio de higiene, fartura financeira, sabedoria, congraçamento e primores de beldades.

De repente! Num átimo, descobriu que nada mais era do que um MARGINAL entre os dois mundos em que coabitava. Sentiu-se como sendo uma cortina de seda dependurada num varal de bambu em um casebre de palha, aglutinando sereno em seus meandros. E que, a cada manhã, era colocado num saco de estopa e levado até um pouco adiante da palhoça, sendo desfraldado e conduzido a um palácio, onde ficava num canto de um salão, para regozijo dos hóspedes e freqüentadores.

Os seus pensamentos estavam em atropelos na sua mente num vai e vem constante, misturava os seus dois personagens numa voragem de liberdade premente. Via o ambiente à sua frente e o seu uniforme impecável, imaginava-se estar no seu quarto no morro como um tapete persa, contorcendo-se no piso de terra e se enrolando para não ir parar na cama / estrado onde as baratas e mosquitos transitavam ainda com receio do luxo emanado daquela peça estranha ao meio deles. Via-se, também, como uma janela de vidros claríssimos que, aos poucos, eram obscurecidos pela sujeira interna e externa.

Procurou fugir daquelas memórias, todavia, o que conseguiu foi o reverso, com uma maratona de personagens desfilando em sua mente, sentia-se esfarrapado e faminto no meio de pessoas ricas que entregavam e recebiam polpudas quantias em notas de cem reais nos balcões, alheios totalmente à sua pessoa no canto do salão. Recusando ser assim discriminado, abandonou a cabina e se aproximou dos balcões e dos caixas, todavia, foi contido pelo gerente que, energicamente, sussurrou:

“Volte para o seu posto de vigilância! Que é o seu lugar! Não perturbe a clientela com a sua presença desnecessária e imprópria” Retornou para a cabina ciente de que o que valia mesmo era a sua função e não a sua pessoa, esta, era um mero cabide ambulante coberto pelo uniforme e dona de um salário insosso e parco, que era “devorado” logo na primeira quinzena de cada mês, razão de ser, de se ver obrigado a viver vegetativamente quando não estava no trabalho e, com o uniforme!

A única “propriedade” que possuía e que lhe era integral, em contra posição com a marginalidade considerada, era o seu pensamento aliado à ação!

Daquele momento em diante, começou a descobrir que tinha um bem incalculável, imensurável e inalienável, além de ser como um passaporte que iria lhe permitir dar uma rota com um porto acolhedor em sua miserável vida, primeiro, precisaria concatenar as suas idéias colocando-as em harmonia ou, em último caso, em atrito, com o seu trabalho atual, sua vida sofrida, seu dormitório, amigos, salários etc.

Ainda dentro da cabina, sacou o revólver do coldre e retirou às cápsulas deflagradas, jogando-as num canto, como se desfizesse do “saco de estopa” que, em seu pensamento anterior, fora usado para conduzir a rica cortina do casebre para o palácio. Ato contínuo retirou o uniforme ficando apenas com o calção zuarte e uma camiseta, como se desfizesse do tapete persa perante as baratas e os mosquitos, ali representada pela clientela rica do grande banco. Saltitou dentro da cabina, qual um escravo ao receber a alforria esperada, tudo isso sem que a platéia o visse, por estar em filas serpenteantes no salão e por ele se encontrar escondido pela própria cabina.

Com o revólver parcialmente municiado, pulou, de inesperado, no meio da multidão, qual um atleta olímpico em competição, o que bastou para que a massa humana deitasse toda no piso, e os caixas levantassem às mãos, sem que Juvenal tivesse nada determinado, de imediato, dinheiro foi-lhe entregue nas mãos e até empurrado para dentro da sua camiseta. Como uma manada de quadrúpedes, grande parte das pessoas se levantou e precipitou-se para a porta, numa fuga desordenada orquestrada por estridentes gritos contínuos.

Completamente desorientado e assustado, Juvenal os acompanhou, todavia, num relance, viu a sua cabina aberta e adentrou na mesma, vestindo rapidamente o seu uniforme e, dando os três tiros restantes sobre as cabeças das pessoas em fuga, tendo à frente o mesmo gerente que, momentos antes, lhe chamara à atenção.
Sirenes eram ouvidas por toda a parte, era a chegada da polícia que ainda alcançou parte da clientela dentro do banco, Juvenal, que nada planejara a não ser a fuga da sua vida ambígua, começou a usar o seu novo saber empírico, que era o pensamento unido a ação, com isso, escondeu o dinheiro dentro das suas botinas, no calção e até no boné e, com o revólver descarregado numa das mãos, saiu da cabina ajudando aos demais a receberem a polícia

A balbúrdia era geral, com cada um dando informações das mais desencontradas sobre o “perigoso assaltante” semidespido, sem que nenhuma das características ao menos se aproximasse do padrão físico de Juvenal.

Policiais foram destacados para perseguirem o ladrão e a sua provável quadrilha, na parte externa do banco, enquanto os mais graduados faziam perguntas ao gerente e demais funcionário. Um deles, mais afoito, tomou o revólver de Juvenal, alegando que seria usado como prova do delito e, também, da competência de Juvenal em colocar os assaltantes em fuga, usando àquela arma sem ferir a nenhum cliente.

Após as investigações preliminares, todos foram liberados e intimados a comparecerem, no dia seguinte, na delegacia de polícia. O gerente, mais solícito, ofereceu a Juvenal outro revólver municiado e recebeu de Juvenal a informação de que não mais iria trabalhar num serviço tão perigoso e mal remunerado, e que não mais retornaria no dia seguinte. Precisando, tão somente, de uma carta de apresentação para a conquista de outro emprego, o que conseguiu de imediato por ter sido o “herói” do dia.

Ao final do expediente, foi-se embora, prometendo entregar o uniforme na manhã seguinte. Cantarolando pelas avenidas e livre dos encontrões, chegou ao botequim na “rua de baixo” quando, só então, depois de muito tempo, ficara sabendo que o dono chamava-se Afrânio. Foi direto ao reservado cobrir o uniforme com os trapos e contar o dinheiro que lhe caíra nas mãos, sem que nada planejasse nesse sentido, era um total de vinte mil reais... Uma fortuna! No seu entender. Do lado de fora, com o uniforme escondido pelos frangalhos, pediu a Afrânio uma cerveja, após um rápido diálogo, ficou sabendo que o comerciante estava vendendo o barzinho por dez mil reais, inclusive o imóvel, prometeu comprá-lo tão logo recebesse o fundo de garantia do serviço que abandonara.

Poucos dias depois, via-se Juvenal de avental branco vendendo bebidas e alguns alimentos no bar, como seu proprietário, o seu comércio ia de “vento em popa” em razão da melhoria ali feita com o restante do dinheiro conseguido e, pelo uso do pensamento unificado com a razão, que aprendera a amealhar e praticar. Juvenal sabia que não conseguiria mudar de um “mundo” para “outro” de forma instantânea, por isso, preferiu ficar no “meio termo”, com o seu bar situado entre os marginais do morro e os abastados das avenidas próximas.

O bar era o seu novo lar, numa das paredes, em destaque, estava dependurado um quadro de honra ao mérito lhe dado pela direção do banco.

Nunca se sentiu um criminoso ou imoral, porque, o gesto que praticara fora apenas de desespero, oriundo de pensamentos ainda desconexos e revoltados. Ao praticá-lo, estava apenas tentando fugir de “tudo”, todavia, recebera nas mãos o dinheiro de alguns caixas e clientes como prêmio merecido, às vezes, o ocorrido lhe voltava ao pensamento, ocasião em que o desviava, sentindo-se como um tubo plástico que faz escorrer dentro dele os dejetos dos esgotos das residências, pouco se maculando com as imundícies transportadas. Sabia que não era a “cortina de seda” nem o “tapete persa”, entretanto, também não era mais o marginal e, sim, um pequeno empresário procurando sobreviver na “selva” que é a sociedade moderna.

POSFÁCIO: Essa é uma obra de ficção, fruto da mente do seu autor, que nunca teria se locupletado com um “dinheiro” lhe vindo às mãos de forma irregular, que pode ser qualificada como “apropriação indébita!”, entretanto, muitos dos “julgadores” de tais procedimentos escusos, não passaram pelas dificuldades que massacravam Juvenal, um trabalhador brasileiro que tinha que residir numa favela, se homiziado dos próprios vizinhos, tendo a sua epiderme sendo devorados por moscas e baratas, os seus banhos era de aspersões, o seu salário não lhe mitigava às primeiras necessidades básicas, resultando na... Fome! E, por contraste, se vendo “obrigado” a praticar o seu labor no meio da fartura financeira. Apesar de Juvenal ser fictício, tenho a certeza de que, se fosse bem pago pelo trabalho executado, e tivesse recebido escolaridade para o tirocínio e uma residência um pouco mais confortável, igual a ele, muita outros, teria devolvido, de pronto, o dinheiro lhe chegado às mãos da forma errônea como aconteceu.

Se houvesse mais sutileza, desprendimento e respeito aos trabalhadores, ainda honestos deste país, muitos “casos” iguais ao do “Juvenal” não aconteceriam, porém, eles acontecem e continuarão a acontecer, enquanto não houver maior critério na distribuição de rendas, escola e, principalmente, de um congraçamento entre os patrões e os empregados, aparando as arestas e, diminuindo a penúria dos menos afortunados, tudo isso, redundando num bom exemplo para os demais e, maior capacidade e dedicação do empregado, resultando em lucros para os patrões e... Não prejuízo! Como causou o personagem em foco.

Sebastião Antônio BARACHO
conanbaracho@uol.com.br

 
Autor
S.A.Baracho
 
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