A terra das flores
A noite aproximou-se de novo, mas tão fria quanto o sol. Os pássaros regressaram ao ninho deixando de se ouvir. A flor que levava ao peito murchara, perdera o brilho. Ele, ele palmilhava lentamente o chão florido, seguindo um trilho imaginário.
-Mais adiante! - gemia a flor - Lá encontraremos a vida! Mais adiante, corre!
O jovem parou, olhou para trás, baixou os olhos, ajoelhou-se, deitou-se, perdera as forças. Fitava agora o céu ainda pouco estrelado. As costas quentes no chão frio impediam-no de fugir à realidade.
-Será este o meu destino? Será isto viver? - Perguntou ao vento.
-Decerto que não! - disse a voz .
Num pulo soergeu-se e virou-se para trás. Crepitava agora uma fogueira dando à voz a silhueta característica de um estranho marinheiro, tão velho quanto frio.
-Decerto que não! - repetiu - Vem! Aconchega-te! Não te quero mal!
Lentamente se aproximou. Calculou os passos e sentou-se. O velho estendeu as mãos ao fogo e com ar sereno continuou :
-O destino és tu quem o traça. A vida?! A vida é apenas lenha, apenas tempo. Aproveita-a enquanto podes, mas não tenhas pressa. Ainda ardes em lume brando! Falas pouco...Diz-me...Donde vens? Posso saber?
-Da terra dos lagos. - disse o jovem olhando os seus olhos, os seus estranhos olhos, olhos pintados de espanto ou talvez de compaixão. Engoliu em seco.
-Vens da terra dos lagos?! - A fogueira crepitava cada vez menos audível.
-Conhece-a?!
-Claro que não... Talvez... Parar é morrer.
-Porque diz isso?!
-Rapaz!... Nesta vida existem dois extremos que se tocam. Um deles é a terra dos lagos.
-E o outro?
-Saberás, um dia saberás! O lume não será brando! Mas diz-me. Como saís-te de lá? Que fazes aqui? Para onde vais?
-Fugi. Tinha que fugir. O que faço aqui não sei. Não tenho rumo.
-Ninguém que nasça dessa terra sai de lá. O fruto cai e apodrece.
-Nasci e cresci lá. Não quero apodrecer. Não sou como a minha mãe.
-E o teu pai?
-Não tenho pai.
O velho fitou a fogueira sem comentar.
-Sabes... Talvez sejas diferente, ou não estarias aqui. Mas essa diferença só te vai deixar mal. Confia em mim. Caminhar de extremo a extremo é arriscar demais. Será um salto brusco para ti. Percebes-me?
-Não. Como disse não tenho rumo. Não procuro um extremo.
-Fazes bem! Evita os extremos! Prova de tudo um pouco. Não te engasgues. A avidez destrói a alma, corroí o pouco que tens.
- Dás assim tanta importância à alma?!
-Mas que pergunta! Claro, ou esta não fosse a terra das flores!
-Terra das flores?!
-Terra da sabedoria, chama-lhe o que quiseres! Aqui toda a energia se sublima, tal como a lenha em fogo. Nesta terra nasce o espírito, os sentimentos mais profundos, as flores mais belas, tal como essa que trazes.
A flor espevitada encarava o fogo, tal como um girassol defronta o Sol .
-Colheste-a por aqui?
-Sim! Cheirava bem!
-Estas flores têm um encanto especial, um cheiro especial. Falam! Mas só quem sente algo profundamente as ouve. Nunca as ouvistes?
-Não! Cheguei à pouco.
-Não é o tempo que te concede esses sentimentos, é a experiência. Terás que sofrer bastante, sorrir bastante, aprender bastante, viver, não sobreviver.
-Mas eu vivo!
-Não, não vives. Não sabes o que é viver. Só pensando existes, só aprendendo consistes. Só com a dor, a dor do pensamento, viverás. Não atires palavras ao vento, sente-as, cheira-as. Cheira-as como cheiras a flor.
-Pensas duma maneira esquisita!
-Não! Apenas penso. Sou como tantos outros que aqui viveram. Acredita que viveram! Poetas, historiadores, filósofos, enfim... Aqui encontras o saber. A experiência de quem voltou e contou. De quem passou pelos nove pilares da vida e esperou pelo décimo, o segundo extremo. De quem deixou escrito tão sublimes palavras, que por tão sublime ordem os glorificaram. Porque o que é escrito não envelhece. É algo que não se esquece. É uma semente atirada ao vento que fecunda num belo rebento. Uma flor! Se alguma vez escreveres, escreve com sentimento. Não desperdices caneta, papel ou tempo. Acredita no que te digo. As palavras num pedaço de papel são imortais, verdadeiras, lindas. Não serão lidas e esquecidas.
-É lindo o que dizes, mas eu não te mereço ouvir. Sei tão pouco.
-Todos nós. Por isso ouve-me. Se cada coisinha que eu sei correspondesse a um rio... E se cada um deles desaguasse na mesma foz... Esta não teria senão o tamanho de uma bacia bem pequenina na qual eu refresco os meus cansados pés. Os rios seriam tão curtos quanto a minha felicidade, tão estreitos quanto a minha existência, tão secos quanto a minha solidão. Mas talvez, talvez bem no fundo da bacia, talvez para lá das lágrimas turvas, e para que eu me possa orgulhar, talvez sorriam dois peixinhos, que eu, apesar da distância possa contemplar! E quem sabe... Uma flor se incline e faça nascer, na foz uma flor que eu possa colher! Fui eu que escrevi!!!
-És poeta?!
-Todos somos poetas. Eu sou marinheiro! Navego no mar das palavras.
-No mar?! Nunca vi o mar... Conta-me...Como é o mar?
-O mar? O mar é lindo! O mar é como um lago, mas infinito e ondulado, não é parado. Imagina o vento que devasta o prado. É revolto, intenso, forte! Transforma a morte em vida, e a vida em morte!
-Então é para lá que eu vou, quero viver!
-Com sorte talvez morrer.
-Porque dizes isso?
-Só verás o mar no nono pilar da vida. O caminho é extenso e o tempo curto. A lenha arderá e nem o mar a apagará.
-Não receio. Não tenho nada a perder senão a sobrevivência.
-Aprendes depressa! Grande ratoeira!
-Os ratos têm medo da água. Diz-me o caminho, por favor.
-Segue para onde a flor se virar. Rumo ao sol, para a terra dos sonhos. Sente o cheiro acre do mar e tenta voltar.
-Voltarei. Prometo!
-Não prometas, pois não o cumprirás. Conheces demasiado os lagos para negares o mar. Lembra-te disto quando olhares para trás.
-Não olharei! Adeus e obrigado!
-Espera! Como te chamas rapaz?
-Eu?! Apenas Trabis.