Júlio Saraiva
A João Antônio(com saudade) e Wander Piroli
CENÁRIO: um quarto sujo, cheirando a mofo, num cortiço da zona sul de São Paulo. uma cama. uma mesa. sobre a mesa, um caixão de segunda. quatro pires, neles quatro velas baratas.
PERSONAGENS: o morto no caixão, em cuecas e camiseta regata; dois tipos, magros - um branco, outro negro, visivelmente embriagados, mais um cão.
- Foi melhor assim - diz o branco, andando em volta do caixão. -Pelo menos não vai dar com a língua nos dentes.
- Se não marcasse bobeira, escapava - diz o negro, chupando um cigarro sem filtro, quase no fim.
- Avisaram a família? - o branco pergunta.
- Que família?! - o outro se espanta, cofiando a barbicha rala. - Só tinha um filho, tá na cadeia. A mulher caiu no mundo. Foi ter com um polícia. Sustenta ele pra não morrer, sabe demais.
- Filha da puta!
(O cachorro sai de banda.Fareja o beco. Ergue a pata e mija. A noite é estrelada. Ouve-se a freiada de um carro. São quatro e meia da manhã. O dia promete ser quente.)
- Que horas vão vir buscar? - pergunta o branco.
- Às oito - o negro responde.
E emenda:
- Tá tudo limpo. Madureira molhou a mão da polícia. Deu um dinheiro razoável. Sabe como é a situação. Dinheiro do rolo.O que sobrou. Com grana, tudo se resolve.
- Caralho! - resmunga o branco. - Então o dinheiro foi todo embora?
(O negro vascula a mochila. Tira um pouco de erva. Apanha um pedaço de papel de seda. Coloca a erva dentro. Enrola. Acende. Um cheiro doce toma conta do quarto.Uma mulher sai de um cômodo vizinho, em camisola.)
- Filhos da puta!!! Já tão fumando maconha, nem respeitam o morto.
- Vadia - retruca o branco, enquanto o outro puxa o cigarro. A fumaça vai de encontro ao rosto do morto. O branco emenda:
- Ele gostava...
O negro:
- É...Gostava...
(O cachorro volta à cena. A mulher bate a porta, não sem antes dizer meia-dúzia de palavrões. O morto continua morto. O branco descobre uma garrafa de cachaça dentro do armário, no meio de duas camisas e uma cueca. Sorri. Ergue a garrafa, como se estivesse levantando o troféu de alguma conquista. O morto parece sorrir. O branco entorna o primeiro gole. Apanha o cigarro de maconha da mão do negro e lhe passa a garrafa. Mexe na cintura. Coloca o revólver sobre um caixote. Sorri outra vez.)
- Agora, sim.
O negro bebe um gole de cachaça. Arrota...
- Às oito levam ele embora. Cemitério São Luís.
O branco:
- E a gente sai pra aquela parada...
O negro:
- É pra aquela parada. Dá pra resolver tudo. A gente se manda daqui.Dá uma grana pra polícia. E o resto que se foda.
O branco:
- É...Que se foda!!!
(O cachorro late. O pano cai.)
- Assim seja! - o branco vibra, a garrafa de pinga na mão.
- Assim seja- diz o negro.
(O cachorro late de novo. O morto sorri, concordando.)
júlio (Antologia de Contos, Assim Escrevem os Paulistas, 1979)