Somos dois.
Um é esse que vai às ruas todos os dias, vai ao trabalho, cumprimenta as pessoas com um “bom dia” nem sempre convincente, cumpre todas as tarefas profissionalmente, defendendo o pão de cada dia. Vive de acordo com a coerção das leis, o lidar do comportamento social. Antes de agir, pensa nas conseqüências, pára, analisa. Esse é o homem que vem se fazendo através dos tempos: finge, chora, sorri espontaneamente, sorri convenientemente, faz política.
O outro, o que parece adormecido, é a fera. Deitado; cabeça entre as patas espreita, rosna, tem os dentes afiados. Àquele que invade o seu território quer abocanhar a carótida, beber-lhe o sangue, dilacerar-lhe a carne. Tem o ímpeto agressivo, mas num ínfimo instante, contem-se. Vem à tona tudo o que aprendeu a ser mediante os milênios. Sorri, olha o interlocutor, e lhe diz: _ Mas que prazer tê-lo por aqui! Passa, então, a observar-lhe os pontos fracos, começa a agir para assegurar-se. Tudo sutilmente, e às vezes quase inconscientemente, o mais próximo possível da naturalidade.
A fera também se detém ante aos instintos sexuais. Dentro de um ônibus, por exemplo, de pé, a fera macho aprecia os seios volumosos da fêmea a quem cedeu assento, num soslaio de grande desfaçatez se deleita. Sente forte o impulso de avançar sobre ela, mas, novamente, contem-se. Evita o constrangimento, zela por sua imagem e sabe exatamente as conseqüências desse possível ato. Contudo, muitos, em circunstâncias parecidas, bêbados, drogados, sob o forte apelo da libido sucumbem, avançam além do limite da sensatez e estupram, e outras vezes, ultrapassando a instância derradeira do descontrole, até matam. São os casos onde a fera subjuga o homem social. Foi mais forte, voltou às suas origens pré-históricas.
Somos dois e somente um detalhe nos é comum: a alma, que está no cerne, que está no âmago. Ela é o equilíbrio e como tal, busca voltar a fazer parte do todo que move o universo, que é a essência de todas as coisas.
Os dois se equilibram no tênue fio que conduz a existência, sob a regência magnânima da alma que quer, ardentemente, voltar ao seio de Deus.
Frederico Salvo.