"Além Tagus!" era o grito que davamos no fim de uma tarde de Verão passada na praia, com o sol a esconder-se por detrás da linha do horizonte e a beijar o mar, nós acabados de beber uma Tagus fresquinha rasgavamos o vento num grito que parecia um arroto. Lembro-me de impressionarmos as pessoas que tranquilas repousavam na mesa ao lado e lembro-me de por conta disso sermos obrigados a sair de lá. Riamos tão alto depois agarrados uns aos outros, enfiavamo-nos na tenda e dormíamos no sossego dos justos até a lua aparecer, depois saímos e ficavamos deitados na areia até a manhã raiar, contavamos histórias de todas as nossas aventuras e riamos tanto que às vezes incomodavamos as gentes que dormiam nos prédios atrás de nós.
Pegavamos na guitarra e dedilhavamos algumas canções que os anos nos ensinaram a perceber, sabiamos as letras de cor, não as cantavamos como os outros, as nossas vozes pareciam fundir-se num tom grave que arreliava os que de fora assistiam ao espectáculo, não queríamos saber, nasceramos para ser felizes e ponto final.
Quando me disseram que estavas doente nem quis acreditar, liguei a todos os que ainda sobreviviam à velhice que se acumulava nas rugas da pele gasta, ninguém estava em condições de te visitar e fui sozinho. Deitado na cama olhavas um ponto fixo no tecto, eu nada disse enquanto a tua mulher me explicava o que queria dizer a palavra Alzheimer como se eu nunca a tivesse ouvido antes. Fiquei preocupado, não te lembravas de mim, depois de estar meia-hora a teu lado decidi que o melhor era ir-me embora, de Lisboa a Montemor-o-Novo ainda são alguns saltos e eu tinha de chegar a casa a horas para jantar. A tua mulher cumprimentou-me e já de saída olhei-te uma última vez e gritei em tom de arroto "Além Tagus", os teus olhos largaram o ponto fixo no tecto e fixaram-se nos meus. Depois de tantos anos ainda vai uma Tagus fresquinha?
. façam de conta que eu não estive cá .