Poemas -> Sociais : 

COMEDORES DE SOBRAS

 
Tags:  dignidade  
 
COMEDORES DE SOBRAS



No penúltimo halo da antemanhã,
Pessoas saem de seu humilde viveiro
Para buscar o combustível do corpo
Em um quase longínquo desterro.


E, ao chegar a seu destino,
A feira,
Esperam pacientemente
O ocaso da efervescência
Da harmonia desarmônica
Dos sóis de quem vende e de quem compra.



Então, quando advém a hora ansiada,
Afluem sôfregas ao encontro do tapete
De frutas, legumes e verduras
Que cobre o chão
Onde, sob os afagos rudes do dia-a-dia,
Rodas, sapatos, pés desnudos ou de sandálias
Apressada e inescrupulosamente pisam.


Ah, e como a fome delas
É canina e ao mesmo tempo conformista:
Um ancião desempregado
Amaina o vácuo em sua barriga
Com uma suculenta manga dormida.
Ah, quando alguém se depara
Com a horrenda fronte da fome
------ Sentada no trono de sua opulência ferina ------
Deslinda que o nojo é luxo;
Não uma alameda a ser seguida.





Algumas, ao regressar a seu ninho,
Comutam refugo em lucro:
O que na feira era lixo;
Na carente vila de casebres
É auspicioso fruto rentável, celeste, divino.


No entanto, para a hoste de grisalhas
Barbas engravatadas e garbosas,
Este paraíso da lídima e visceral miséria
É nada mais que um moribundo resquício
De seu passado sem rosas e azaléias.


Não, mas estas pessoas:
Estas pessoas sabem
Que a miséria cintila até o ponto
Em que assoma a dor nas vistas;
Que ela é viva, concreta, fenece, fere,
Queima e alucina.
E ela o faz de inúmeras maneiras:
Maneiras que a mais poderosa verve
Nunca sequer imagina.


Sim, todavia alheias aos mais atrozes sofismas,
Elas prosseguem crentes na vida:
Sempre a segurar a ponta do rabo
Daquilo que crêem ser a esperança,
Apesar do crepúsculo, das mazelas,
Das chagas em abundância,
Da dor, da amargura e da desabonança!
Enfim, elas prosseguem,
Mesmo com o mar infinito de desamor,
De inclemência, da ausência de ternura
E do culto da sentimental distância.
Sim, estas belas pessoas continuam a hastear,
Embora não saibam,
O estandarte do vislumbre de uma vindoura era magnânima.


JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA


 
Autor
jessé barbosa de oli
 
Texto
Data
Leituras
827
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/05/2008 13:27  Atualizado: 24/05/2008 13:27
 Re: COME...
A magia da sua poesia está na crueza do seu humanismo, na linguagem educada mas cortante. Parabéns. Um abraço

Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 24/05/2008 13:33  Atualizado: 24/05/2008 13:35
Colaborador
Usuário desde: 13/10/2007
Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: COME...p/Jessé Barbosa de Oliveira
Meu Caro,

Eis um poema que me toca profundamente. É uma chicotada forte no rosto dos contentes. Chega a me lembrar João Cabral nos seus melhores dias. Mais que um poema, estes versos traduzem um grito estrangulado na garganta dos que vivem das sobras.E um alerta aos desavisados senhores que defendem o câncer do capitalismo.

Júlio