A arribada do “Senhor na Cruz”
A noite estava abafada e a lua já se tinha escondido há muito. No portinho as sombras moviam-se silenciosamente, aqui e ali a ponta vermelha de um cigarro brilhava no escuro.
Uma masseira deslizava pesadamente sobre os rolos, empurrada à força dos braços da companha em direcção à água. Os pescadores de calças arregaçadas chapinhavam à borda da água, quase sem ondulação. Estava uma calmaria podre que não os deixaria navegar à vela.
Lentamente, como num ritual, as masseiras foram metidas à água e flutuavam agora na pequena enseada de abrigo. No pequeno mastro do “Senhor na Cruz” tremelicava a luz da candeia, que pouco ou nada alumiava.
- Então para onde vai hoje, tio Tone?
- Vou dar um lance a Afife, como ontem. Não me correu mal a vida, não senhor. E tu Manel, também vais para o sul?
- Não! Eu vou rumar a oeste, aqui em frente. Tenho cá uma fé… não sei explicar.
- Vai com Deus Manel, vai com Deus! Vamos lá armar os remos que se faz tarde e ainda temos muito que andar.
A masseira do tio Tone avançou com cautela por entre os outros barcos em direcção ao largo. Ao passar o Sabugo já o segundo par de remos golpeava a água em perfeita sincronia. Era admirável a forma como, em plena escuridão, os quatro remos se moviam em uníssono, fazendo deslizar a velha masseira, negra de alcatrão.
Sentado no banco da ré, uma mão sobre a cana do leme, outra apoiada sobre a borda, uma beata entre os dedos rudes, o Tone da Vista Alegre, patrão da embarcação sardinheira, mantinha-se atento a tudo o que o rodeava. Contrariamente ao que esperava, ao largo o calor não diminuira e o tempo continuava abafado.
- Vamos lá a ver se não cai uma trovoada – resmunga entre dentes, mas suficientemente alto para ser ouvido pelos seus homens.
- Deus nos livre – diz o seu irmão Rodrigo que remava no banco da proa, a bombordo.
- O céu continua limpo, pode ser que se aguente. Se ao menos corresse uma aragem para içar a vela…
Pelas bandas da Gelfa, puxou um pouco o leme e a agulha de marear, pousada ao seu lado sobre o banco, passou a apontar para sudoeste. Já não faltava muito e a espaços pressentiam-se pequenos cardumes de peixe, certamente sardinha, que rebolhavam à tona.
Cada vez se afastavam mais da costa e o Tone tinha-se levantado para tentar distinguir na penumbra da costa as marcas do pesqueiro. As luzes da ponte de Afife tinham de alinhar pela casa branca do padeiro, que se distinguia perfeitamente pelo fumo que saia toda a noite pela chaminé.
- Vamos lá rapaziada! Toca de preparar a rede para largar. Areosa, tu continua a remar. Rodrigo não largues já, só quando eu disser.
De súbito, uma aragem de vento quente acaricia-lhes o rosto, seguida de uma rajada forte e ainda mais quente.
- Mas que raio… Jesus, que é aquilo? Parece uma parede!
- Armai outra vez os remos e tapai-me essa rede – grita o tio Tone sobre o barulho do vento que soprava cada vez mais forte.
As rajadas já não eram tão quentes e encapelavam o mar que minutos antes estava manso e liso como a palma da mão. Cachões de espuma esvoaçavam e pequenas ondas embatiam com violência crescente na masseira.
- Aproai ao vento, aproai ao vento, depressa rapazes.
E uma vaga, felizmente pequena, entrou de través na masseira encharcando os dois homens da proa, o Rodrigo e o Daniel, o mais novo da companha, ainda um rapazinho, que a lide do mar fizera teso.
Apesar dos seus dezasseis anos feitos pelo Natal, era o melhor remador daquela embarcação, o “Senhor na Cruz” e já tinha sido admitido para tripulante do salva vidas, por vontade do mestre Manuel Catalão, que via naquele rapaz calmo e pouco dado a folias, o filho que ele nunca tivera. Quis a sina que tivessem sido quatro raparigas que a Rosinda lhe dera, antes de ter apanhado aquela fraqueza nos pulmões à qual não tinha resistido.
O mar era cada vez mais, empurrado por rajadas de vento que pareciam chegar de várias direcções.
A velha candeia presa na ponta do mastro tinha-se partido quando uma vaga mais forte sacudiu a masseira, como de uma casca de noz se tratasse.
Apesar da madrugada ir alta e pouco faltar para nascer o dia, o céu estava agora ainda mais escuro e tapado de nuvens, que deixavam cair as primeiras pingas.
Em breve chovia a cântaros ofuscando a vista dos homens que não conseguiam distinguir nada à sua frente. Relâmpagos cruzavam o céu em todas as direcções e os trovões eram ensurdecedores.
- Daniel, pega na cunha e escoa-me essa água. Ó Senhora da Bonança, valei-nos nesta aflição. Ave-maria cheia de graça… – e continuou para si a oração com a devoção que só o perigo de vida dá significado.
Não conseguia distinguir as feições dos seus homens apesar de estarem a um ou dois metros dele, mas adivinhava-lhes o pânico e o desespero, face a um naufrágio mais que provável.
O dia amanheceu sem que a tempestade desse mostras de amainar. Talvez o vento não fosse tão forte, não era de certeza, mas o mar embalava em ondas que ora os engolia, ora os suspendia na sua crista. Viam-se os clarões difusos de relâmpagos mas nem se ouviam os trovões, sinal que a trovoada estava muito longe e que para já não oferecia perigo.
O vento de sudoeste obrigava-os a manter o barco com a proa para esse rumo e não mais conseguiram avistar terra, tal era a cortina que a chuva formava. O rapaz ainda não tinha parado de escoar água e o Gaspar tinha-se lhe juntado com outra cunha. Mesmo assim, no fundo do barco a água não baixava e teimava em manter uma mão-travessa onde os baús com o comer e outros pertences da companha flutuavam.
O mestre tinha levantado o leme e pegara num dos remos para que os outros folgassem um pouco.
A meio do dia apenas tinham conseguido roer uns bocados de broa encharcada e beber uns golos de vinho que cada um tinha trazido nos seus baús.
Molhados até aos ossos, apesar dos oleados que traziam vestidos, corpos doridos de mais de quinze horas sentados a remar e a lutar contra o mar, a chuva e o vento.
- Já nem sinto os braços – queixa-se o Rodrigo – só me apetecia fumar um cigarro.
- Eu pego no remo, Tio Rodrigo. – Responde prontamente o Daniel que, de cócoras continuava a trabalhar com a cunha – Posso ir para o remo, tio Tone?
- Vai lá, para o Rodrigo descansar um pouco. E tu Areosa?
- Vamos andando, vamos andando, mas um cigarrinho e um gole de vinho também me apetecia. Raio de tempo…
- A seguir descansas tu. Quem diria que vinha um andaço destes. Se soubesse, nem da cama tinha saído.
- O mar parece menos e o vento está a cair. Só a chuva é que não pára.
- Tende calma, o pior já passou e a Senhora da Bonança não nos abandonou. Ah, só queria saber onde estamos. Vamos esperar mais um bocado e se o mar acalmar aproveitamos para levantar a vela e navegar para leste até vermos terra. Se formos sempre para leste temos de encontrar terra!
Uma hora depois, desfraldaram a vela e o Tone retomou o seu lugar habitual à popa da masseira. Agora a agulha apontava para leste e todos se afadigavam a perscrutar o horizonte com ansiedade. Já a tarde ia passada quando o Areosa, de súbito, exclama:
- Cheira-me a terra. Já não estamos longe.
- Ó homem de Deus, como é que tu sentes o cheiro?
- Sinto, pronto, sinto…
Pouco depois vislumbraram ainda muito longe as cumeadas de vários montes, que procuravam identificar.
- Aquilo é Espanha e ali parece Santa Tecla.
- Tens razão, aquele é o monte de Santa Tecla, – confirma o tio Tone – Deus seja louvado, estamos perto de casa e havemos de lá chegar sãos e salvos.
- Que dirão de nós? Se calhar julgam-nos perdidos.
- Ai julgam, julgam! Deve haver já muito choro no portinho.
- E os outros barcos, tio Tone? Também passariam aflições? – pergunta o Daniel que continua à proa da masseira.
- Não sei meu rapaz. Oxalá não tenha havido nenhuma desgraça… Talvez tenham tido tempo de se recolher. Só nós é que estávamos tão a sul e a tempestade apanhou-nos de repente. Os outros estavam mais para oeste e muitos tinham vindo para o norte, mais ou menos onde nós estamos agora.
Em breve a escuridão voltou a rodeá-los. Com a noite, o vento amainou, a vela folgou e não houve outro remédio que colhê-la, dada a sua inutilidade.
Do fundo do baú do Gaspar saíram umas pataniscas e umas batatas cozidas que foram repartidas entre todos, pobre manjar que não aplacou a fome que agora sentiam, passada a angustia que a tempestade lhes causara. Dos restantes baús nada se aproveitava pois a água salgada tudo estragara.
Voltaram à faina dos remos, sempre para sudeste, cada vez mais perto de terra e mais perto do portinho que os viu partir. Dois dias perdidos, um susto que nunca mais esqueceriam, a preocupação e a dor que certamente causaram às suas famílias, raio de vida.
Silenciosos, os homens remavam e matutavam nas agruras da vida do mar, a incerteza do ganho, o risco de vida.
À volta do “Senhor na Cruz” o mar já não era o do dia anterior. Apesar de ainda haver alguma ondulação, a ausência do vento tinha-lhe dado um tom de prata velha, reflectindo à parca luz do minguante. O silêncio que só no mar é possível, apenas quebrado pelo chapinhar dos remos e o ranger de alguma tábua.
- Parem de remar – ordena o mestre, levantando-se para melhor observar as águas à volta do barco.
- Que se passa tio Tone?
- Temos sardinha à nossa volta. Rápido, preparem a rede, vamos dar um lance. Areosa, já sabes, tu continuas aos remos. Rodrigo, podes largar!
A rede castanha de fio de algodão, encascada há meia dúzia de dias, começou a sair borda fora, arrastando a cortiçada que havia de a manter à superfície. Com o leme virado a estibordo, a masseira ia largado lentamente a rede sardinheira em arco ligeiro. Agora distinguia-se perfeitamente o cardume perto da superfície, que fazia agitar as águas, como se fervessem. Mal tinham acabado de largar toda a rede, logo o mestre ordenou que a recolhessem sem demora.
- Já? Ainda agora largamos, tio Tone.
- Vamos alar que a rede já está pesada. Força aí na polé, Rodrigo.
Lentamente o pescador retira da água, braça a braça, unindo a cortiçada aos pandulhos, deixando cair a rede serpenteante no fundo da masseira. Não tardou a brilhar no escuro o dorso prateado das sardinhas emalhadas.
- Gaspar, ajuda-o que a rede está carregada. Com jeito para não melar a sardinha. Temos de ir desmalhar a terra…
Cada vez mais sardinha subia a bordo presa àquela armadilha, agonizando em estertores inúteis, logo coberta por outras braçadas de rede e mais sardinha agonizante.
Quando acabaram, o barco tinha apenas um palmo de borda fora de água, tal a carga que recolhera e a aurora já se anunciava.
- Vamos rapazes, hoje a Senhora da Bonança está connosco e também tem direito a quinhão, não seja eu homem de palavra. Já vejo a luz da Ínsua, daqui a nada estamos no portinho.
As noites eram curtas, faltavam duas semanas para o S. João, já era dia alto quando a masseira carregada passou ao largo da Ponta das Medas e entrou no portinho, esgotando as poucas forças que restavam àqueles esforçados remadores.
Um silencio respeitoso fez-se em terra e foram muitos os que se benzeram ao verem aquela embarcação e a companha que já tinham dado como perdida.
Quando o fundo tocou suavemente na areia, foram muitas as mãos que os ajudaram a saltar em terra. O silêncio quebrou-se com o choro da mulher do Gaspar que se lhe pendurou ao pescoço. Aquele pobre ainda tentou resistir, mas a comoção foi mais forte e duas grossas lágrimas rolaram preguiçosamente pela cara abaixo, marcando um trilho pela barba de três ou quatro dias.
- Ah Tone, que te julgamos perdido. Por onde andaste? Onde te abrigaste? – Pergunta o Manuel Catalão, dando uma forte palmada de amizade nas costas do Tone da Vista Alegre.
- Não me abriguei tio Manel. Mantivemo-nos ao largo e fomos arribados para Espanha, lá para o norte de La Guardia.
- Pois olha que aqui já ninguém dava nada por vós, as vossas mulheres puseram luto e até mandaram rezar missa.
- Ainda não foi desta e com a graça da Senhora da Bonança regressamos vivos e com a rede cheia de sardinha. Vamos começar a desmalhar que já se faz tarde e é preciso levá-la para a venda. Vamos a isso rapazes!