Os passos sucediam-se ao longo do caminho, ora mais apressados, ora mais cansados. A respiração, já ofegante, ficava cada vez mais pesada e pela fronte escorriam fios de suor numa forma ininterrupta. Os lábios secos diziam-lhe que o corpo queria água. A desidratação era grande e não escondia o sua presença.
Estava atrasado. A hora marcada para a reunião já havia passado e, na certa, iria ouvir uma reprimenda do patrão. Não era uma situação inédita.
Continuava a correr, pelo menos tinha essa sensação.
Que raio de dia para o despertador avariar. Tocou sempre à hora e hoje, pura e simplesmente, apagou-se, não tocou, nem piou... nada.
Merda! Das outras vezes tivera culpa e não havia perdão, baldara-se... mas hoje não. O pior é que ninguém ia acreditar. Para ajudar, com os táxis era o costume. Nunca nenhum respondia aos chamados da sua rua. Tinham medo. Também não era para menos, tinham sido mortos dois, naquela zona, nos últimos três meses.
Suava rios e ainda lhe faltavam uns boas centenas de metros para chegar ao escritório. Tinha que pensar em algo para dizer. Mais do que nunca tinha que ser convincente. Tinha que inventar qualquer coisa que fosse plausível. Mas o quê? É tão difícil pensar naquelas condições.
O trânsito atrasava-o, as pessoas não se desviavam e ele por vezes tinha mesmo que abrandar o passo. Que desespero! Para ajudar, o telemóvel estava sem bateria. Até isso! Ontem à noite esquecera-se de o deixar a carregar. Merda, outra vez!
O dia tinha começado mal, muito mal e não estava a melhorar. Mau sinal. O que podia estar para vir ainda?
Semáforo vermelho. Os transeúntes aglomeravam-se à beira da avenida enquanto esperavam ordem para passar. Não pode ser! Passou, empurrou quem estava no caminho e passou. Gritaram-lhe alguns impropérios e deram-lhe um puxão de protesto. Descoseram-lhe as costas do casaco até meio mas chegou à avenida. Tantos carros, tantas buzinadelas. Viu-se no meio de uma corrente de carroçarias com motor e rodas, que não se detinham por nada. Oito faixas. Oito faixas de inferno, quatro em cada sentido.
Lá se foi desviando, tentando pôr os olhos em tudo o que se mexia.
Impossível. Naquele vai e vem, desvia e passa, salta e corre, perdeu um sapato. Não parou e conseguiu atingir o outro lado. De relance, olhou para trás e viu a peça de calçado, já disforme, no asfalto.
Semáforo verde. Aí vem toda aquela gente que estivera a assistir e a gritar-lhe coisas de matar.
Manco, continuou. Da história para contar, nem sombras.
Os passos continuavam a suceder-se e a multidão voltava a não se desviar. Ao passar por uma esplanada, atropelou o empregado que vinha de dentro com uma bandeja cheia. Que trapalhada. Cafés e colas por todo o lado. A camisa deixou de ser branca. No processo ainda caiu de gatas raspando as mãos e os joelhos na calçada. Para as calças nem quis olhar. Merda, pela terceira vez!
Descomposto, lá seguiu.
Uma hora e meia de atraso. Ai! Vai ser muito mau! Ainda por cima não conseguia pensar em nada para dizer no escritório. Nesta altura já nem se atrevia a pensar em nada mais que lhe pudesse correr mal!
O edifício. Ali estava o edifício. Já ali.
Bem, lá continuou, enchendo o peito e tentando aprumar-se da melhor forma que lhe era possível. Nesta altura, suava como nunca e aventava preces ao deus que, com toda a convicção, dizia não existir.
Ao chegar à portada do prédio, um enorme prédio de escritórios, lançou a mão ao vidro da porta giratória e num repente, esta respondeu-lhe ao contrário.
Que pancada!
Era só o que faltava! O nariz espirrou em sangue e começou a latejar. Que dor... que dia! Mas que raio foi aquilo? Sentado na calçada, com os olhos em lágrimas porque lhe doía o nariz, a alma, o corpo e o orgulho, olhou para a entrada do prédio, como se procurasse quem responsabilizar por aquilo.
Dois tiros e um homem no chão. Era o homem que o tinha abalroado.
Arregalou os olhos de tal forma que se esqueceu que estava feito num oito.
Ele conhecia o tipo. Trabalhava no mesmo piso, a umas secretárias de distância. Do nome não se lembrava mas, era aquele que teclava só com um dedo. Vá-se lá saber porquê, talvez tivesse a outra mão aleijada... e agora estava ali estatelado, mergulhado numa poça de sangue. À porta do edifício estava, com a arma ainda quente que agarrava com ambas as mãos, o tipo da segurança privada da empresa. O homem estava ofegante e, também ele, sangrava. Que dia!!
O que teria acontecido antes, naquele antes que lhe preencheu o atraso?
A curiosidade da urbe começava a aglomerar-se e, num ápice, viu-se engolido. Debateu-se e levantou-se. Conseguiu entrar.
Não foi difícil constatar o que tinha acontecido. O homem tinha perdido o norte. Havia gente deitada por todo o lado. O cheiro a pólvora e os gemidos doídos eram donos do átrio.
Caiu em si e gargalhou convulsivamente. Tremia.
“Por um despertador avariado! Foi por um despertador avariado!” pensou, enquanto caía sobre os joelhos e olhava para o tecto.
- O despertador avariou-se - balbuciou, já com lágrimas nos olhos.
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.