Poemas : 

Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte sete

 
 
1. porque sim


de todos só não sei da sacanagem
e da mesma sacanagem que não sei
sou ser vivo e a vivo selvagem
da sacanagem vivo, sou o seu rei

da guerra e do ódio dou viagem
viajo acima e abaixo da lei
dou Ares de alguém que anda à margem
invejo todo esse mal que ignorei

deus não me serve nem outro diabo
temo apenas essa morte certa
que levo, por todo lado, semeio

os meus deveres são o fim, o cabo
que chegam desta mia porta aberta
eu, o sem ódio, só a maldade odeio


2. gatilhos


Acertei um tiro certo no peito,
caiu sob o calor duma granada;
o raio que fulminou, luz irada,
fez a carne em lume brando feito.

Errei no céu, no ar rarefeito,
gasta a munição no meio do nada
e esses porcos lutam na manada,
na lama, nessa merda do seu leito.

Não tenho coração, nem intestino:
olhos na mira para os balear,
dedo no gatilho, sou infantaria.

Seja mulher-bomba ou menino,
todos podem todos os meus matar;
vivo já morto nesta porcaria.


3. Arte-lharia


Eu só vos quero de mãos ao alto,
indefesos e prontos para morrer;
sem porvir, desanimados de ser,
decepados, os sem cabeça, asfalto.

De cores negras, rubras vos esmalto
nas minas irão todos vós padecer
as armadilhas que irei-vos fazer,
apodrecer, sofrer, virão de assalto.

O que interessa é que eu respiro;
a terra remexida, toda queimada,
é um malzinho, uma coisa menor.

Tanque artilheiro, sou eu que miro,
antes mosquete, capa e espada,
vómito e fezes na estrada em redor.


4. Soneto Baleado


Tudo é dor, é tudo o que tenho
que me tinge e atinge no peito,
já não sangro, a bala aceito,
acolho-a com um ardor estranho.

Duma agudeza, sem fim, eu venho,
destroços são meu último leito
nos quais, sem escolha, me deito.
Perdi a aura, o meu tamanho.

Sou um cordeiro num sacrifício,
um monte sujo e desfigurado,
apodreço, à espera duma vala.

Foi este o meu estranho ofício,
sem, jamais, o ter planeado,
ser destino, fatal, duma bala.


5. Oração


À morte grito, às vezes choro,
o silêncio é o que responde,
é sobre si mesma que se esconde;
o brado é onde me demoro.

À morte lamento, às vezes oro,
o silêncio vem, não sei donde,
e por mais perto que ela ronde,
o uivo urge em cada poro.

Cresce a amargura, dia-a-dia,
cada verso vem cheio de vazio.
Insisto no verbo, não me calo.

Palavras levam-nas a maresia
sem mar, oiço silêncios a fio
nesta conversa em que só eu falo.


6. Sementeiras


Mãos unidas ali no presbitério,
ribombar de bombas no convento;
os gritos são o único lamento,
um halo triste, dorido, sério.

Sementes só há no cemitério,
famílias inteiras escrevem, ao vento,
aos entes, poemas, sem um intento.
E esse frouxo chamado Rogério.

A natureza vive a vergonha
de ter criado o monstro Homem,
o sol, a lua, as estrelas, o mar.

E toda a reza tão enfadonha
que vira o mal em favor do bem,
também nos salva, virá nos matar.


7. Manual de rendição


Senhor eu não sou digno desse amor,
mui menos serei quem o personifica,
talvez me torne em quem o explica,
numa escola sem vida, professor.

Apresento a rendição como penhor
e espero a clemência de quem fica.
Que, pela força da riqueza mais rica,
se tornou um claro e justo vencedor.

Esteja atento a essa má justiça
que, por agora, lhe dá a vitória.
Levanto os braços perante a morte

sem ser a minha única premissa,
talvez o virar desta história.
O futuro, ter, do azar, a sorte.


8. Esconderijo


Camuflei-me como um camaleão
escondido em vil território,
disfarçado de outro simplório.
Sou o sem cidade, sou um só vilão.

De arma em riste tenho canhão
à distância de um acessório,
camuflado de sorriso ilusório,
tenho as mil e uma armas dum espião.

A morte crua é a minha cena,
do teatro sou um actor e encenador
e, deste acto, dito o pior ensaio.

A minha deixa tem forma pequena,
deixo a morte ser o apresentador.
P'la porta dos fundos, enfim, eu saio.


9. Estará perto?


Entre rixas antigas e metais raros,
senhores que fazem negociatas,
que não são platinas, ouros, pratas,
os pobres, de tão pobres, saem caros.

Apostam as fichas todas, sem reparos,
o sangue jovem; reles sociopatas...
Metais raros como bairros de latas,
memórias, traumas tão baços e claros.

Trampa na trompeta, só arabescos,
petróleo e gás entram em todas as contas.
Afinal até Chernobyl interessa

e todos os contratos fofos e frescos
assinados a sangue e afrontas.
Com (des)interesses o fogo cessa.


10. Os sem juiz


Não sei como fechar a parte sete,
que poema me chama a clausura,
que o pó de terra veda a sepultura
que em cada vida se intromete.

Tentei fel e lodo, tudo que infecte
e pele cheia de pus, amargura,
um nada de luto e dor da mais pura,
catanas cirúrgicas como estilete...

Não sei como acabar a sétima parte,
em que poço mergulhar, o que fazer...
Pareço um louco que o mesmo sempre diz,

sem sentido, sem vertigem, nem arte.
Enquanto outros se entretêm a morrer.
Os sem juízo, sem culpa, sem juiz.


Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não.
 
Autor
Rogério Beça
 
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