"A CHAMA SOB AS RUÍNAS"
p/ Ana Paula Barros
Antes de tudo, um sorriso
— faísca a fender o fundo do ar,
onde as cinzas se amontoam,
sopradas na memória,
arranhando o rosto do tempo.
O sorriso, incendiário do desejo,
não se apaga ao fim da chama.
Permanece, leve, na fragilidade
de chama,
sugestão da centelha que os olhos
não podem alcançar:
vestígios do querer jamais satisfeito,
mas preso ao peito.
As cinzas, cintilantes, não caíram.
Bailaram no vento, grãos de silêncio
espalhados pelo sopro
sobre o que não se vive
e clama.
Agora, na quietude restante da chama,
o vento voga como uma voz vacilante,
tecendo traços, feito cinza e fogo,
rumores de um amor que não foi,
e, ainda assim, se põe a fulgurar.
"O MEU IDIOMA"
O meu idioma é íntimo,
as palavras, feridas abertas,
suas luzes, lentas labaredas.
É um idioma de dizer, desdizendo,
onde o choro, antes, escorria
pelos cantos da boca,
afundando-se em cada gota.
De lá para cá,
restam os ruídos,
o arranhar do vento nos vidros,
o rangido das portas,
os passos arrastados no corredor,
como se o silêncio também tivesse peso.
E na mesa, a vela derretida,
o pingo de cera, ainda quente,
rasga o papel em branco,
como se escrevesse
o que não posso dizer.
"2011"
O amor chegou sem aviso,
ao fim dessas tardes quietas, de memória,
sem promessas, sem pompas.
Não trouxe trombetas,
nem tratados,
apenas fez-se ninho
aos meus olhos,
e transformou meu peito
num pássaro perplexo.
Selou sua missão e se foi.
Mas o tempo, tecelão teimoso,
não desfaz o que deixa:
o amor ainda canta
no crepitar da chama,
no tilintar da taça;
o tique-taque do relógio
persevera e pesa
o que já não se conta.
"AOS CÂNTAROS DA LUZ"
Um dia, pensei, a vida retribuirá.
Sob a tarde escaldante,
os anos se arrastavam,
idênticos, imóveis.
Mas um dia há de fluir, pensei.
Ofuscado pelo sol,
fui o mesmo de sempre,
mas só por um instante.
Se me resta apenas
o horizonte inerte,
aguardo a noite,
sem qualquer blefe.
A noite aprochega, serena,
e com ela, a escuridão —
não como abismo,
mas como véu.
E sob o manto escuro,
vejo: a luz não se foi.
Ela se espalha,
tímida, pelos cantos,
como se esperasse
minhas mãos vazias.
Pois, se a vida
é tudo o que tenho,
colho a luz
aos cântaros,
enquanto o horizonte,
silencioso, vela.
"À SOMBRA DE PASÁRGADA"
p/ Manuel Bandeira
Mesmo sem passaporte,
nem visto que me leve,
ao fim de cada dia,
algo ainda se esconde
nas mãos
— um suspiro,
sussurrando:
talvez, um dia,
descanse…
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.