A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas até se esgotar o sangue e o reflexo. O asfalto da rua principal estava ensopado e, além da ignorância, não havia nada que explicasse aquilo.
A lua, na noite anterior, tinha desaparecido do céu e as gentes tinham deixado fugir a razoabilidade, refugiando-se nas palavras alucinadas de um ancião eremita que se escondia com os lobos, longe da população... vá-se lá saber porquê, só aceitava como iguais os animais.
Naquela noite, o velho, aparecera na taberna da Rosa e tinha emborcado uns tintos... alguns a mais do que a conta. Soltou a língua de uma forma que assustou os presentes e alvitrou que o mundo ia acabar. A premonição tinha contornos de real, o homem foi eloquente e deixou margem para a imaginação popular. Gritou, para cima das mesas que se deveriam sacrificar os não pensantes, que os céus exigiam sangue e que o iam conseguir de qualquer forma.
As pessoas, que sempre, por natureza, foram impressionáveis e acreditavam nas vozes grandes, não duvidaram de tal orador e reuniram-se de barriga encostada ao balcão... medo! Estavam todos apavorados e crédulos no desejo anunciado dos céus. Durante aturada discussão, surgiu um "Se tem que se sacrificar algum bicho, que se matem as galinhas".
Trôpego, o arauto, deixou a taberna envolta em murmúrios e seguiu para a sua clausura. Desapareceu ao fundo da rua e, nesse momento, iniciou-se um eclipse. A lua diluiu-se na noite e do medo da mol fez-se pânico. Gritos, orações, choros, desmaios espasmáticos, promessas, almas desalmadamente abertas... pânico verdadeiro.
A lua voltou já perto da madrugada.
A população excitada correu para os galinheiros de faca em punho, de olhos esbugalhados e com os cantos da boca húmidos de branco pastoso.
O cacarejar estridente e aflitivo dos animais nasceu com o dia.
Começou-se a sentir o odor enjoado do sangue. A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas. Uma a uma lá foram tombando esvaídas.
O amanhecer abriu de olhos limpos mesmo por cima da aldeia.
As gentes, extenuadas, arrastaram-se para as portadas das suas casas, entre lamentos velados. A rua pricipal da aldeia espreguiçou-se pejada de aves mortas. Começavam a aparecer as moscas.
A população desapareceu dentro das suas casas. Silêncio absoluto. Nem vento. Tudo dormia.
No limiar da aldeia surgiu o eremita. Sorria. Aproximou-se desenrolando um saco enorme e começou a enchê-lo com os cadáveres. Encheu-o de tal forma que mal o conseguia arrastar.
Amarrecado e em esforço mas satisfeito, o velho afastou-se e juntou-se à sua matilha de lobos. Em silêncio, partiram, enquanto a gentalha dormia cansada e iludida.
Em silêncio, partiram sem olhar para trás. Lá para a frente, noutro ponto da idade, haveria outro medo qualquer para agarrar.
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.