Crónicas : 

A grandeza de não ser um raso qualquer

 
Sucupira acordou com um vento estranho. Não era o sopro da brisa matinal, mas aquele vento que levanta poeira e expõe o que estava escondido debaixo do tapete. A praça principal, usualmente cenário de fofocas amenas e histórias mal contadas, tornou-se palco de algo inédito: uma epifania coletiva sobre a rasura humana.
Logo cedo, Dona Zuzu, conhecida pelos bolos queimados e opiniões fervorosas, já estava a postos no coreto, gritando com toda a força:
— Gente rasa, minha gente, é igual bolo que não cresce. Você pode até fingir que é sobremesa, mas ninguém acredita!
Era um facto. Ninguém em Sucupira confiava num raso. Não importava se era da direita ou da esquerda, da família dos Pacheco ou dos Cordeiro, nem mesmo se vestia terno ou chinelo. O problema do raso não era a aparência, mas a falta de consistência. Diziam uma coisa, faziam outra. Argumentavam como quem joga confete, sem sustento nem brilho.
Enquanto Zuzu discursava, Seu Agenor, o filósofo de boteco, recitava:
— “Nada é mais simples do que a grandeza; de facto, ser simples é ser grande.” Quem disse isso foi um gringo, mas é verdade aqui também. Só que em Sucupira, a simplicidade virou raridade! Aqui, o povo confunde falar bonito com dizer algo útil. Já viu um raso dar jeito em alguma coisa? Nem eu. Rasos são como vento de tempestade: fazem barulho, mas não molham o chão.
A audiência, que já beirava a plateia de um circo, começou a rir e aplaudir. Até que Dona Clemilda, a rainha do crochê e das indiretas, resolveu dar sua contribuição:
— Sabe o que é ser raso? É alguém abrir a boca e você já saber que dali não sai nada profundo.
É tipo sopa sem tempero ou fofoca que não pega no tranco.
Ser raso é ter três camadas de roupa e ainda assim passar frio na alma. É isso!

Sucupira inteira gargalhava. Mas foi quando Lucicleide, com seu vestido florido e sua língua afiada, subiu ao coreto, que a crônica do dia ganhou sua nota mais alta:
— Olhem aqui, povo. Eu não sou mulher de dar voltas, então vou dizer: vocês toleram muito raso porque, no fundo, têm preguiça de lidar com gente que provoca pensamento! Raso é fácil de engolir, mas não alimenta. Agora, forte e profundo? Isso desafia. Dá trabalho, mas transforma. Então, vejam bem: escolham entre mastigar a simplicidade ou engasgar com a rasura, porque a vida é curta e eu não tenho tempo para sopa rala!
A praça virou um palco de reflexão inesperada. Ninguém saiu ileso daquele dia. Nem mesmo o prefeito, que, de sua janela, anotava no caderninho:
— "Proibir gente rasa em eventos públicos? Talvez uma boa ideia..."
Sucupira nunca mais foi a mesma. E, enquanto o sol se punha sobre o coreto, a cidade inteira repetia a frase que ficou como eco daquele dia:
“Seja simples, mas não seja raso. Porque até a lama tem profundidade.”
E assim, entre risos e olhares curiosos, o vento de Sucupira se fez poesia. Afinal, não há grandeza sem simplicidade — mas simplicidade sem força é só preguiça bem vestida.


Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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