Prosas Poéticas : 

O Dia em que o Tempo Devolveu

 
Passei de carro e, juro, vi a flor no asfalto. Mas a flor mal teve tempo de me emocionar, porque logo o farol do meu carro iluminou uma cena ainda mais surreal: um escritor, aparentemente famoso pela cara de desamparo dramático, apanhava de uma mulher com pouco mais de meio metro de altura. Sim, em plena estrada, no meio do nada, com o cosmo e eu a assistir — ou melhor, só eu, porque a estrada estava tão vazia quanto a fé de Sucupira em dias sem fofoca.
Era noite alta, e o cenário parecia saído de um show mal ensaiado. A mulher desferia golpes precisos de judô, karatê, jiu-jitsu, kung fu, boxe, capoeira, muay thai — uma mistura sinistra de tudo isso — enquanto o escritor tentava esquivar-se com a graciosidade de um elefante num campo de tulipas. E eu? Reduzi a velocidade, quase parei. O volante entre as mãos parecia distante, a minha atenção totalmente roubada pela cena. Não era só curiosidade; havia um estranho prazer em assistir. Que delicinhaaaa!
Como é que aquele escritor se metera naquela situação? Seria este o mesmo homem que tentara, num poema infame, urinar contra o Tempo? Pois bem, o Tempo agora devolvia o favor. Era como assistir a uma justiça cósmica, mas também uma metáfora descarada: afinal, quem nunca apanhou de algo que achava ter dominado?
O mais fascinante era que o homem não corria, porque, afinal, não havia para onde ir no meio do nada. Nem sequer pedia socorro; parecia que a voz lhe faltava, como se a poesia tivesse fugido do peito. Aceitava cada bofetada como se fosse o preço a pagar por ser quem era. Talvez fosse mesmo. Ele era conhecido em Sucupira por metáforas absurdas e por circuncidar leões acordados. Mas, ao que parece, nenhuma dessas proezas o preparou para enfrentar tanta "ternura" numa estrada deserta.
Enquanto eu assistia, um pensamento incômodo crescia: por que não fazia nada? Poderia abrir a janela, gritar algo, pelo menos buzinar. Mas fiquei imóvel, cúmplice do absurdo, como se aquele espetáculo fosse uma peça escrita para mim e a única regra fosse não interferir. E se eu atrapalhasse a lição que ele parecia estar a receber?
Quando ela terminou o serviço — porque, sim, houve um fim e eu vi pelo retrovisor —, levantou-se como quem acabara de encerrar um espetáculo. Sem olhar para trás, entrou no carro, ultrapassou-me com uma serenidade angelical e desapareceu no escuro. E o homem? Ficou lá, sentado no meio da estrada, iluminado apenas por uma luzinha ao longe, dessas que balançam no ar em show sertanejo. Talvez esperasse por Deus, por um amigo ou só por coragem para levantar.
Enquanto o carro dela sumia, só pude pensar: que ternura furiosa, cansada de ser apenas "inspiração". Ou seria a própria vida, disfarçada de meio metro de raiva, a lembrar ao escritor que a poesia é bonita, mas não o protege de pancadas quando menos se espera?
Psicologicamente, a cena tinha tudo: a teatralidade de um duelo, o absurdo de uma peça de Ionesco e o humor involuntário de uma comédia barata. O escritor parecia representar todos nós — vulneráveis, apanhando daquilo que não entendemos, enquanto o mundo (ou, no caso, uma sucupirense curiosa) só observa. E eu? Talvez representasse aquele olhar que escolhe o conforto da distância, enquanto a vida acontece em close-up, brutal e honesta.
No final, continuei a dirigir. Mas confesso que ainda pensei em quem faria a crónica primeiro, se ele ou eu. Só que não o fiz. Porque, afinal, a flor no asfalto e o poeta na estrada têm algo em comum: ambos existem para nos lembrar que a vida é ridícula, imprevisível e, acima de tudo, incontrolável.
E talvez isso seja mesmo poesia. Ou só azar.


Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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Enviado por Tópico
AlexandreCosta
Publicado: 02/01/2025 12:55  Atualizado: 02/01/2025 12:55
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 Re: O Dia em que o Tempo Devolveu
Ninguém gosta de apanhar, senão os poetas
É daí que chega a melhor das inspirações...
Eu apanho de todos os lados, mas confesso que prefiro golpes de beijos, abraços e afins... mas tudo o que apanho e me espanta é sempre inspirador!

Feliz ano de 2025 :)