Prosas Poéticas : 

Entre a Guitarra e o Eu-Lírico

 
Sucupira é uma daquelas cidades que parece testar a sanidade de quem ousa morar aqui. O mar, tão belo à distância, ri-se baixinho das nossas ilusões. Foi esse mar que o corretor usou como isco quando me vendeu este apartamento. Usou a palavra mágica: "tranquilidade". Ah, a tranquilidade! Pintou um arco-íris verbal tão convincente que, se fechar os olhos, quase ouço unicórnios a trotar entre o hall e o elevador. Foi nesse devaneio que assinei o contrato. Mas aqui estou, no epicentro de um pandemónio vertical, onde o único marulho constante é o da insanidade dos vizinhos.
No andar de baixo mora o guitarrista. Um homem de espírito indomável e banho opcional, cuja presença se sente antes de se ver. Ele vive numa bolha própria, onde cada acorde desafinado carrega a força de uma revolução imaginária. Cruzar com ele no elevador é uma experiência transcendental — só que ao contrário. Sempre que abre a boca, sai um manifesto político que nem ele compreende, acompanhado de uma performance física digna de um mosh pit improvisado. Ele aproxima-se como quem desafia o mundo para um duelo, gesticula, grita, e, se estamos num dia particularmente azarado, leva-nos uma cotovelada acidental.
Uma vez, ao cruzar com ele, tentei afastar-me para a parede do elevador.
O movimento foi mal interpretado; ele avançou com mais fervor, como se eu fosse o público que ele aguardava. O mar, cúmplice como sempre, enviou uma lufada de ar que nos apertou no pequeno cubículo, como se quisesse garantir que eu experimentasse o concerto completo. Passei o resto da viagem a rezar para que o segundo andar chegasse rápido e para que o cheiro não fosse permeável à roupa.
No andar de cima vive o escritor. Ah, o poeta trágico, o dramaturgo da própria desgraça! Todas as noites, das oito às onze, trava batalhas épicas com Deus. Por vezes, parece que está a ganhar; outras, parece que está a implorar por um empate. De manhã, transforma o marulho sereno em monólogos rancorosos sobre as injustiças da vida — dir-se-ia que o oceano o ofende pessoalmente. À tarde, o drama atinge o clímax: é a luta visceral com a própria escrita. Frases voam como dardos imaginários e, pelo que percebo, o público invisível nas suas alucinações críticas é implacável. Vive com as janelas cerradas, não por pudor, mas por medo de que uma simples brisa leve as suas páginas aos olhos de um crítico literário.
E eu? No meio deste teatro grotesco, finjo que ainda acredito no arco-íris que o corretor me vendeu. Trabalho o dia todo e volto para casa com a esperança ingénua de encontrar silêncio. Mas paz aqui é como um peixinho dourado num aquário quebrado: escapa por entre os dedos enquanto o guitarrista dá um concerto subterrâneo e o escritor, lá em cima, recita o epitáfio da humanidade.
Mudei-me para cá na esperança de fazer um bom investimento, convencida pelas promessas de serenidade e pelo encanto de viver junto ao mar. Agora, questiono-me se troquei uma ilusão por outra. Será que comprei tranquilidade ou apenas um bilhete para este teatro de absurdos? Talvez o corretor tenha razão. Em Sucupira, tranquilidade é relativa. Pelo menos o mar está sempre ali, a gargalhar, por me ver refém deste mosh pit literário e existencial desta vizinhança.
Mas uma coisa é certa: amanhã vou de escadas.


Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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