Prosas Poéticas : 

A Sincronia do Desalinho

 
Escuto-te como quem contempla um incêndio antigo a devorar o horizonte, um fogo que arde sem pressa, como se soubesse que o tempo é seu aliado. As tuas palavras chegam-me como brasas levadas pelo vento, que cruzam o ar sem tocar a terra. Vejo-te avançar, preso a uma coleira invisível, e cada passo teu ressoa como um trovão distante, como se o chão tremesse por respeitar o peso da tua cólera contida. Falaste-me de alturas, de vistas que enganam. Observo-te descer, não como quem cai, mas como quem retorna ao ventre do desconhecido, um voo ao contrário. Há algo de ritual no teu movimento: tu não perdes altitude, tu entregas-te a ela, como um pássaro que entende que a gravidade é apenas um convite para repousar no inevitável. E a superfície, quando te acolhe, exala o aroma antigo das ferrugens do passado, como se guardasse, no silêncio profundo da terra, os ossos de tudo o que foi esquecido. Quando dizes que fizeste um filho à solidão, vejo-te à beira do silêncio, num quarto onde o ar pesa e o lume já não aquece. Moldas pedaços de vazio em criaturas frágeis, feitas de tinta e eras, poemas que tremem entre ser e não ser. Observo-os como quem olha um ninho suspenso no galho mais alto — pequenos demais para o céu, grandes demais para o esquecimento. Vejo-te sonhar com peixes que voam e mares que se dobram como lençóis. Há algo de bruto e belo nos teus sonhos: são eles que desafiam os limites do que se pode tocar. Permaneces entre o concreto e o impossível, lutando com o invisível, chamando os astros como quem grita num deserto, mesmo sabendo que o eco não responde. Observo-te debater-te contra correntes sem elos, libertar braços que nunca estiveram presos, porque as tuas algemas são feitas de vontade — e há grandeza nisso. És um relógio sem ponteiros, o único capaz de marcar a passagem do desalinho. A faísca que temes é a mesma que te dá forma, um fogo que dança em ti, não para te consumir, mas para te eternizar. Se a vida é uma cidade com ruas apertadas e luzes que vacilam, és aquele que caminha atento às sombras, à procura do que se esconde nas esquinas. Observo-te de longe, em passos, em voz. Os ciclos continuam a girar, mas no teu silêncio partido em dois, ouço a única verdade que importa.



Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 21/12/2024 01:04  Atualizado: 21/12/2024 01:04
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 Re: A Sincronia do Desalinho
Amo tuas mãos, simples assim. Admiro esse retrato de mestre, pois sou retratista. Menina, tu és uma nuvem que voa. Boa noite.

Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 28/12/2024 02:45  Atualizado: 28/12/2024 02:45
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 Re: A Sincronia do Desalinho
Revisita o a beleza. Feliz ano novo. Bjs