Prosas Poéticas : 

A Ilha Cercada de Palavras

 
Há quem escreva por passatempo, quem escreva por prazer, e quem escreva porque a escrita é a última tábua de salvação antes de afundar. Para esses últimos, parar é morrer — e morrer é impensável. Talvez escrevam por vício, por necessidade biológica ou por aquela teimosia que só os condenados ao ofício entendem: as palavras têm de sair. Ele, o escritor, é desses. Cada frase é como uma gota do seu sangue. Um sacrifício. Uma transfusão do invisível para o visível. Poucos reparam, mas ele nunca respira fundo entre uma linha e outra. Não quer perder tempo. Talvez tenha medo de que, ao respirar, o fio da memória se rompa ou que a próxima palavra não venha. Talvez saiba que um dia o silêncio virá — e ele não quer estar desarmado quando isso acontecer. Desce as escadas do tempo todos os dias, sem lanterna, com os joelhos esfolados e o coração entre as mãos. Lá no fundo, encontra o menino que foi. Vê-se pequeno, num canto qualquer do passado, a chorar como um anão que implora por centímetros. "Cresce", diz-lhe. "Não há tempo." O menino olha para cima, descrente, enquanto o homem — mais velho e mais cansado — vai caminhando para a frente, cavando no peito um túnel onde só cabem palavras. Escrever, afinal, é o único jeito que ele conhece de se lembrar das coisas sem ser engolido por elas. A memória é um comboio que liga o céu ao seu íntimo. Vai e vem, entre nuvens e abismos. Na infância, achou que a velhice seria uma profecia distante, com letras que nunca conseguiria ler. Hoje, com os olhos ardendo e a caneta a falhar, percebe que as letras estavam lá o tempo todo — só que nunca foram legíveis. Por isso escreve. Escreve para se doer um pouco mais. A dor, ele descobriu, tem um poder curioso: traz imagens vívidas, cheiros esquecidos e vozes que ninguém mais ouve. É como espetar agulhas em si mesmo para despertar fantasmas adormecidos. Quando tudo mais falha, cria um campo fértil, onde as palavras são semeadas e colhidas com um cansaço resignado. À noite, pernoita com os olhos postos em criaturas invisíveis, no meio de florestas onde os animais — selvagens e poéticos — exalam versos no escuro. Lava o rosto numa pia onde corre lava fria. Não há manhãs tranquilas. A escrita nunca lhe dá descanso. A vida à sua volta, com todos os seus ruídos, é o livro que ele ainda não terminou de escrever. Cada momento, cada pessoa, cada gesto, é uma linha por decifrar. Ele escreve porque, ao escrever, entende-se. E porque se entende, resiste. Os pulmões enchem-se, as ilusões retornam, e a morte fica adiada por mais um dia. Quando se dá conta, está sozinho. O seu corpo já é uma ilha. Uma ilha rodeada de livros que ele próprio construiu — página a página, lágrima a lágrima, respiração contida. E ali, naquele silêncio onde poucos se atrevem a chegar, o homem respira finalmente. Não é um respirar fundo, como fazem os que nada temem. É um respirar pequeno, quase imperceptível, mas suficiente para continuar. Amanhã, ele dirá ao menino outra vez: “Cresce”. E o menino acreditará — por mais um dia.


Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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