1. É a vida
Eles falam os dois a mesma fala.
Dizem isto: perdes tu, ganho eu.
Perde a palavra o que aconteceu,
sem som, tom, até o silêncio se cala.
Dois jumentos têm uma só pala
que cega cada olhar, pensar seu.
Ficas ou sais, rochedo, camafeu?
Desampara a loja, dá-me a sala!
Salas vazias, a ordem foi cumprida.
A vitória tem o preço da derrota
e em cada batalha, sabor amargo.
A alegria passa sempre ao largo
menos na sala de cada idiota.
É a vida.
2. As lágrimas das injustiças têm um nome: mãe
A mãe perdeu o filho perdeu a mãe
o filho perdeu a mãe perdeu o filho
entre todos há um alvo e gatilho
perder é uma conjugação de sem.
As lágrimas são de injustiça, desdém,
e tudo o que existe perdeu o brilho
nada se faz sem ruído, estrilho.
Todos somos filhos de alguém.
Se elas fossem apenas água e sal,
não houvesse dentro dor ou alegria
haveria quem por graça as bebesse.
Mas há nelas amargura e bem mal.
Há nas lágrimas alguma poesia,
antes não houvesse.
3. cemitérios novos
Lá há muitos cemitérios novos,
são murados a reboco cinzento,
construção civil em desenvolvimento
repartidos por esses dois povos.
Moradas infectas, covas em covos,
de vis arquitetas de armamento.
Mausoléus, pirâmides de cimento,
novidades velhas, todas rogo-vos.
Uma frase diz: Eterna Saudade,
epitáfio tanta vez repetido.
A viúva que cedo enviuvou
vive morta de medo, nesta idade,
sem nunca ter vivido o marido.
Cemitérios novos, ao neto e ao avô.
4. Com verso com Filipe e João
O poder que pensas ter não existe,
venha ele de arma ou duma cruz;
esse martelo, prego, não me seduz
nem poder mal fazer, de livro em riste.
Esta lama, em que um dia me viste,
está-me no sangue, na história, na luz,
e toda a tua vontade é de fel e pus.
Somos irmãos sem pais, tu aí, desiste!
Não há língua, nem céus desocupados,
não há produtos da terra, toucinho,
presunto serrano, vinho do Porto,
cozidos à portuguesa empratados,
não há pão alentejano, bom vinho;
Tudo é paelha ou tapas. Ou morto.
5. Até as ratas
Até as ratazanas e as baratas
respiraram seu último suspiro,
suspiraram derradeiro respiro,
acabaram deitadas de gatas.
Até os eucaliptos nas matas,
pinheiros de resina sem retiro,
arbustos, ervas, bagas, papiro,
acabaram queimados em latas.
Os cães, os lobos, ratas, os javalis,
as lebres, as cervas, salsa, hortelã,
manjericos das festas populares,
a relva cortada, o que lá se diz,
acabaram os nasceres da manhã.
Foi tudo pelos ares.
6. Varar
Semeei escravos abaixo do Saara,
semeei sangue, para nada colher,
na guerra fui herói, até a perder,
nesta selva de catanas, e cara.
Cada emboscada que ele me prepara,
tenho ardil armadilhado a responder.
Abaixo do Saara, é só sobreviver,
semeando ordem, a troco duma vara.
Ninguém me disse que o sangue que se semeia
cedo ou tarde, arde.
As suas espigas são vulcões ao lume,
em que tudo se odeia…
A nobre coragem, fica cobarde.
Tudo o que lá nasce é estrume.
7. encontrou dois paus no meio do escuro
Encontrou dois paus no meio do escuro.
Com ambos, e uma corda, fez uma cruz,
fez uma reza sentida a pouca luz,
frases ditas em verso, pesar puro.
Olhou para o crucifixo, inseguro,
triste, amargo, de joelhos e capuz.
A um amontoado de pedras se reduz
uma sepultura, calçada, um muro.
Vela sozinho este só velório,
no meio de fogo inimigo posto,
nós na garganta, uma lágrima solta…
Em vão, um rosário tão inglório
no meio do nada, apenas desgosto.
Quer saber: quem lhe tirará a revolta?
8. À moda de Cervantes
Escudado sem escudeiro vai Quixote
cavaleiro sem cavalo, só rocim,
que faz a paz, é nobre espadachim,
são rosas senhor, são rosas, a trote.
Do nevoeiro D. Sebastião sem dote
reaparece, Artur e o mago Merlim
numa mesa sem cantos dizem assim:
batalha, até que a paz te derrote.
Há um travo doce a esperança
que se trava como o fumo de cachimbo
na lagarta do cogumelo de Alice.
Mas o que nos resta é Sancho Pança
hordas que vivem, da peleja, o limbo.
Da terra ensanguentada, a tolice.
9. A lenda do prato frio
Mais injustiça, menos injustiça,
sobra apenas julgamento divino;
a vingança é o vulgar destino
e o prato frio, em gelo, a premissa.
A lei é uma lembrança submissa,
o rancor, o combustível mais fino,
renovável, amargo, assassino…
Todos se benzem, rezam sua missa.
Os telhados de vidro à chuva, ao sol,
às pedras, ainda cobrem as casas,
ainda existem nelas novos e velhos.
Anda fechado, sem chave, o farol.
Todas as tábuas se tornaram rasas,
e partiram-se todos os espelhos.
10. Memórias de objetor
O que é a dita consciência,
que me baixa os braços e desarma?
Que me fecha e nunca alarma,
que é vil paz ou pura ciência.
Faz e desfaz sua sapiência,
traz à força bruta o bom Karma,
a Kiev, Lisboa, Oslo, Parma,
incapaz de perder a paciência.
Cruzo os braços: não, é apenas não.
Miro a chacina: os braços cruzo,
sou um general na forma de peão.
Talvez me falte algum parafuso,
ou algum tipo de religião.
A minha objeção, é puro abuso?
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não.
Claro que a Crimeia agora não passa de uma localidade referência que tem focos por todo lado.
Não viveremos numa guerra mundial?