Crónicas : 

O mundo realmente não está pronto

 
Estava a caminhar pelas ruas de Sucupira com a minha fiel câmera, imersa no desafio hercúleo de capturar a essência desta cidade onde até as pedras parecem ter opiniões políticas, quando deparei com uma cena que poderia muito bem ser o clímax de uma cena teatral de gosto duvidoso. Um casal de namorados, estrategicamente posicionado junto à fonte da praça, trocava juras de amor eterno — ou pelo menos até à próxima briga sobre séries e doramas. Ele, um aspirante a trovador moderno, pontuava as palavras com uma dramaticidade digna de um prémio de consolação em concursos de declamação: "Sabes, não convém viver tão perto dos que carregam desgraças..." Ela, que já começava a parecer ligeiramente arrependida de não ter escolhido um lugar mais movimentado, suspirava com um olhar de quem revia mentalmente os prós e contras daquele relacionamento. "Mas também não faças a tua morada longe dos que sabem o sabor do amor", ele prosseguiu, fazendo um gesto teatral com as mãos. "Prefere viver onde o mundo nasce, onde os rios contam segredos..." disse, apontando poeticamente para a fonte ao lado — ironicamente, ligada por um cano enferrujado que gotejava. Eu, tentando conter o riso, ajustava o ângulo da câmera, convencida de que estava a presenciar a união improvável de Camões com um influenciador digital. Quando ela finalmente falou, sua voz tinha um leve tom de exasperação mascarada de curiosidade: "Mas então e tu, Ricardo, o que fazes da vida?" Ele, com uma seriedade de mármore, respondeu: "Eu sou uma casa sem janelas, mas cheia de enigmas. O mundo é que ainda não está pronto para entender." Foi aí que o riso me escapou, mais alto do que eu gostaria. Ele virou-se para mim, os olhos a disparar raios de indignação. "Desculpe-me, está a achar graça ao quê?" "Nem um pouco", respondi, contendo-me com esforço. "Só estava a pensar que o céu precisa de alguém para contar histórias, ou fica entediado." Ele pareceu ponderar, satisfeito com o que interpretou como uma admiração ao seu talento, enquanto ela o observava com o cansaço de quem sabia que esta não era a primeira nem seria a última pérola filosófica do dia. Voltei à minha tarefa de fotografar, mas saí dali com uma certeza: Sucupira nunca desilude. Seja pelos seus recantos, seja pelas figuras que os habitam, cada cena é uma obra de arte inacabada, mas sempre brilhante no seu absurdo.


Bem-vindos ao meu refúgio, onde desvendo os mistérios da mente humana através da neurociência e da arte da palavra. Sou uma simples pessoa que, nas horas vagas, se torna escritora, explorando o mundo através da observação. Amante das artes e da diversi...

 
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paollalopez
 
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