Domingo à noite.
Saio do comboio com as malas.
Para nova viagem, agora de autocarro.
É cedo, mas o sol já se foi há muito.
Escuro, o sítio está quase vazio.
À exceção de mim na paragem de autocarro.
E de umas quantas prostitutas, fora da paragem.
Sento-me. Pode ser que assim não me confundam.
O autocarro demora. As prostitutas perfilam-se perto e desconfiam. Nova, eu? O sítio está tomado... Pára um carro para uma "vizinha". Olha para mim e diz qualquer coisa.
O autocarro, por favor.
Lá vem, lá vou eu.
Última paragem e saio. Agora é a pé. Com as malas.
Quem me vir andar, parece que pouco pesam. As malas. Ando rápido.
Não porque quero chegar rápido a casa.
Mas porque quero fazer um telefonema.
À frente e pelo caminho há uma cabine telefónica.
A casa pode esperar, e bem. O mais provável é chegar lá e ter a cama desfeita, a minha roupa usada e a minha loiça suja. O povo gosta mais da galinha da vizinha. É o que dá partilhar casa. Que grande merda.
Mas a chamada.
Chego à cabine. A perspetiva da chamada deu alento à caminhada (ainda longa), a mim. Sorri até com a ideia. Sinto borboletas na barriga...
Domingo à noite é hora de lágrima presa, atilho no pescoço.
Quem quer o domingo à noite?
A cidade vazia, quase. Escuro e frio. Chuvisca agora... Raios. Vou ficar um pinto, se continuar.
Mas a cabine é fechada. Malas no chão, moedas para o sorvedouro. Uns alongamentos nos ombros. As malas ainda fazem algum estrago. Respiro fundo e marco o número.
Chama do outro lado.
Atende outra voz que não a tua, "ele não está". A voz di-lo com pena de mim, parece. " Não sei a que horas vem, mas deve vir tarde", "quer voltar a ligar?".
Como voltar a ligar?
Só se esperar aqui. Merda, outra vez.
Aguardo. Neste cubículo. Espero que não apareça ninguém que precise do telefone. Espero. Mais um bocado. Sento-me no chão. Não posso com os pés. Quem manda andar de saltos altos? Este percurso é de sapatilhas. Deus me livre!
Estou cansada. O ânimo desapareceu quase. Volto a ligar e se ainda não tiver chegado, pronto, vou pra casa. Ligo.
"lamento, mas ainda não chegou, menina", "não tem problema, eu depois volto a ligar outro dia"
Outro dia.... É domingo à noite. Tinha de ser hoje para o domingo desaparecer...
Malas e mais caminhada. Agora é só subir e chego.
Ponho a tiracolo uma delas e a outra é trolley. Que peso! Puxo, puxo e pouco ando. Tenho de tirar a que tenho no ombro. Pesa chumbo.
Paro e espero, olhando para as malas. Que raio?
Volto a tentar, e dou uns passos com as malas, mas assim não vai dar. Nunca mais. Nem consigo andar, quanto mais chegar a casa. E agora?
Deixo uma delas aqui, no meio da rua, e depois volto buscá-la? Arrisco ficar sem ela e que grande trabalheira. Não entendo... Mas se ainda há pouco...
Deixo a do tiracolo e levo o trolley. Mais fácil. Mas até esse tem de ser com puxões. Não anda. Começo a desesperar... Vou buscar a tiracolo e nem consigo levantá-la do chão. Vou para o trolley. Puxo de novo. Nada. E começo a chorar. Nervos. Sofro dos nervos.
Como faço para sair dali e ir embora?
Alguém pôs pedras nas malas enquanto eu estava na cabina.... Porque não estavas em casa???
Decido que não consigo levar as duas. Uma tem de ficar. Levo a outra. Um pedaço e desisto mais à frente. Vai ficar ali. Não dá. Impossível levar esta também. Os meus pés....
Bem, nesse caso, vou sem nada. Mas até o meu corpo me pesa... os pés ardem de dor e os ombros carregam troncos.
E sigo, chorando, molhada da chuva que caiu e eu nem senti, a medir cada passo que se incendeia quando pouso os pés no chão.
As malas.... É domingo à noite e tu não estás.
I got that feeling
That bad feeling that you don't know (Massive Attack)