Poemas : 

Sem efeito

 
conquistado pela bruma imperial

que toda me ocupou

impedindo meu coração de ver

e meus olhos de amar

escrevo à condição

de se apagarem as palavras

logo que gastas

consumidas no desamor

 
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gillesdeferre
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 24/12/2024 12:13  Atualizado: 30/12/2024 09:51
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: Sem efeito
Parto para este comentário com a impressão de que é para não se fazer.
É o que, de certo modo, nos diz o título, que intriga desde o primeiro instante.
No instante a seguir, tenho, novamente, a impressão de não ter a certeza se devo começar a leitura do princípio para o fim, ou vice-versa. Ou do meio em qualquer das direções.
Desde então apercebo-me que há qualidade, pois não há superioridade nem inferioridade em qualquer dos versos. Arrisco-me a dizer, em qualquer das palavras.
Uma estrofe de oito versos, acho que dá para classificá-lo como uma esparsa, sem rima. "Sem efeito".
O título tem uma aliteração de Es, e é uma negativa, que é uma anulação de quase tudo. Apenas não se anulará, se o corpo do texto for ele mesmo uma nulidade. Como na gramática se diz duma dupla negação ser uma afirmação.
Uma anulação de quê, neste caso?
Na presença do “desamor”.
É elegante a inversa do amor usar a palavra como sufixo. Por outro lado, há a anulação duma palavra que pudesse ser sinónimo dessa inversa.
Falamos do ódio? Da indiferença? Da amizade? Da paixão?

Este poema conquista-nos cedo. Logo no primeiro verso.
O mistério, que suscita a “...bruma...” (qualquer uma) vem adjetivada com um superlativo imponente: que território é maior do que um império?

Depois o sujeito poético apresenta um capricho no quinto.
“...escrevo à condição...” mas, como o escrito está feito e estamos a ler, a condição deve ter sido satisfeita.
Ou não?

A dita bruma, depois, como qualquer névoa que se digne, ainda mais com tal tamanho, ocupou todo o ser do sujeito poético, toda a existência, toda a vontade, todas as posses, todos os sentires, todos os sentimentos. Mas destes, são destacados dois impedimentos, em versos distintos.
No primeiro caso “...o coração de ver...” e no segundo “...os olhos de amar...” havendo um génio, comedido, da inversão dos papéis no órgão em relação à sua função. Embora o coração amar seja discutível, para os devidos efeitos (apesar do “Sem efeito” do título), há um teor romântico e poético em que é aceitável, ou ainda, exigido.

Voltando ao capricho, do que se trata?

Da vontade do sujeito poético em ver o escrito apagado, no caso do desamor ser o mote.
Mas o brilhantismo continua, simplificando e complicando o que acabei de definir, numa frase.

No uso do “...gastas...” e “...consumidas...” na mesma ideia, tendo sentidos simétricos.
No “...apagarem as palavras...”, colocando outra(s) personagem(ns) que não o sujeito poético na narrativa.
Insinuando o uso de ferramentas nessa execução (que apagador será?).
No imediatismo do “...logo que...”.

Do “...desamor” já falei.

Resta-me lembrar que o título passaria a ser "Com efeito", com a substituição da última palavra, de "...desamor", pelo amor.

“Sem efeito”, no fundo, é um não-poema que circula sobre si mesmo e deixa-nos numa mais do que agradável confusão.