Mamã: Há de haver quem estranhe o teu nome – mamã. Pois se é o que conhecemos desde que começamos a falar, pequeninas. Não tens outro. Só este. Chamar-te outra coisa seria como me chamares por um nome que não é meu.
Minha querida, meu amor, meu anjo da guarda. Estás a meio do caminho entre purgatório e inferno. Como foste aí parar? Nessa cama de hospital vejo-te os olhos claros, esses pequenos poços encherem-se. Não quero. Não gosto. Não quero, não quero... Em casa, tudo avaria. O congelador ganhou gelo. Terá sido o modo de se manifestar por ti? Com excesso de água sólida? Uma torneira pinga. Água. Numa cadência musical que desconheço. A porta do teu quarto não fecha. Encravou sei lá onde. Como tu. Onde encravaste? Como? Porquê? Durmo na tua cama, na esperança que venhas e me ponhas de lá para fora. Ocupo o teu quarto para que o vazio que deixaste seja falso, oco, ocasional. Não há vazios verdadeiros, pois não mamã? Porque tu voltas. E voltas bem. Voltas tu, a mamã que eu conheço, a que abraço, aquela a quem mando e de quem recebo beijos do ar. A corda que nos une aos cinco do ninho está tão esticada. Puxamo-la sem forças para te trazer, te tirar do inferno onde estás, da cama articulada silenciosa, nova, sem ruídos. Não. Essa cama devia ranger, gritar, clamar por misericórdia. A corda. Puxamos, puxamos, puxamos. Vens? Voltas? As nossas nódoas negras de nada nos servem, não nos demovem, não nos desagradam, não nos doem. Nódoa em cima de nódoa. Pele verde ou vermelha. Rasgada da raiva. Da vida de inferno. Do diabo. De um diabo qualquer que te possuiu. Não chores. Prometo que te não largamos, vês a corda?
O papá compôs as avarias. O frigorífico já não chora água em estado sólido. O papá também avariou, mas continua a puxar. Mas é o elo mais fraco. É a tua metade que grita por ajuda, que esconjura o diabo, que faz exorcismos amadores. Diz "Consigo arranjar e compor tudo... Menos a mamã..." E senta-se numa cadeira em frente ao ar condicionado frio. Fica ali. Quedo e calado. Semblante limpo. Nada. A mamã não está. Virá quando? Como?
Os teus jardins mostram-se conformados, abandonados pelas mãos que lhes falavam. Há muito não são tocados, não te ouvem, não te veem. A tua presença fazia crescer e florescer a flora desta casa. Olho as árvores e penso no carinho que tinhas por elas, no orgulho dos botões a nascerem. E agora? Se a tua vida for esta, despeço-me deste destino de desgraças que algum deus nos deu. Um grupo de desgraças chama-se desalento.
Essa cama, essa cadeira. A tua pele macia, tão macia, mamã... O teu deus. Que te quer ele? Que te deixe em paz. Que nos deixe em paz. Um deus qualquer, magnânimo, não faz isto. Não sacrifica os seus filhos, não lhes impinge a dor.
Tens a tua fé, eu sei. Mas não tenho a minha comigo. Avariou-se, como o resto. Acho que o papá também não o consegue consertar.
Não podemos voltar à mesa das refeições, ao antigamente, ocupá-la inteira, e ouvir Demis Roussos ou Trio Odemira, enquanto jantamos?
Mamã?
I got that feeling That bad feeling that you don't know(Massive Attack)