Na paisagem urbana flutua-se com o olhar sobre telhados envelhecidos com crostas de musgo húmido, e antenas esquecidas pelo tempo que teima em passar por lá, e paredes escurecidas, fumadas pelos carros que passam pelas ruelas à anos, que deitam largos suspiros de fumo com um desejo quase desesperado de se agarrar às passivas casas outrora brancas.
Outrora novas e alegres.
Vêm-se parques infantis moribundos, onde já não se ouvem os gritos próprios de crianças a aprender a criar um mundo que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser abandonado, e vêm-se canteiros toscos com árvores mortas e ervas daninhas, lixo jogado fora...
Lixo jogado dentro...
Deixa de se ver pequenos gestos (em pequenos dias) que outrora serviam para algo além dum presente comprado à pressa para alguém que se ama à pressa.
Com toda a pressa do mundo.
Um telefonema feito com muito amor (e muita pressa) a alguém que não devia caber numa agenda tornou-se um sinal de que já ninguém precisa de setas apaixonadas lançadas por algum Cupido arqueiro.
Entretanto, apenas lembrado em postais produzidos em série, tão pessoais como passes de autocarro, esse ser, símbolo de algo além de telefonemas e jogos de telenovela, com o seu arco velho, vazio, já sem sorrir (não consegue), continua voando a custo por entre telhados envelhecidos, antenas esquecidas, e parques moribundos como lixo jogado fora...
Lixo jogado dentro...
Já não acerta em corações abertos, vivos, prontos a serem unidos em laços maiores do que postais escritos com frases impressas em papel pobre.
Em papel podre.
Nem a cidade, que apadrinha uniões nas suas belas entranhas de rios de asfalto, se consegue apaixonar de tão vergada por telefonemas e almoços agendados.
Só resta ao arqueiro apontar uma seta ao seu próprio coração, e esperar meio vivo (meio morto), entre telhados envelhecidos, antenas esquecidas, paredes escurecidas, parques moribundos, almas jogadas fora.
Almas jogadas dentro.
Para descobrir alguém, talvez uma única pessoa, que no meio de tantos postais podres deixe de ter pressa e rasgue a agenda.
Emanuel Madalena