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Conto muito incompleto e apreensivo

 
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Aquela era uma sala onde as coisas esquecidas se dispunham, numa ordem tudo menos especifica. Havia simples malas de senhora, de todas as formas e cores. Chapéus de homem, não esquecer que este é um cenário de época,...fica ao critério do leitor qual,...e por isso as modas implantadas são algo a ter em conta. Pequenos recipientes metálicos, aparentemente destinados a bebidas alcoólicas. Casacos de criança, na sua maioria de meninos que o autor imagina encalorados e por isso com vontade de brincar no exterior com o mínimo possível de roupa. E ainda bíblias, em estados diversos de conservação, mas próprias de uma qualquer região de interior necessariamente religiosa, e tradicionalista. A descrição fica por aqui porque na realidade não há muito mais a dizer deste local. Irá, nos próximos instantes, entrar aqui uma senhora de meia idade, em trajes de trabalho, que terá como função a organização e limpeza do espaço. Juntar objetos por categorias, e agrupá-los em estantes próprias. Retirar pelo menos parte das espessas camadas de pó que se vão acumulando nas prateleiras onde os objetos foram deixados sem qualquer critério. E ao fim de alguns minutos de trabalho vai retirar-se, fechando a porta de forma sóbria e discreta porque assim é o seu timbre. É esta a rotina deste espaço em dias produtivos, de trabalho, já que quando a prioridade é o ócio, a escuridão é a única visita que aqui se faz notar. Por entre sombras travestidas de mulher, esse costuma ser o tempo do proprietário desta sala. Um anónimo, que a seu tempo será identificado, e que paga a uma pessoa apenas o suficiente para a manter apresentável. O objetivo é usa-la como espaço de recoleção de vícios. Falamos de alguém perigoso para a sociedade...
...um homem que se esconde em roupas desenquadradas, e não se enquadra no mundo com a discrição das pessoas racionais. Perdeu as razões de viver. O olfato pelas coisas boas da existência. E só tem este refúgio.

A meia idade que ostenta, diz que ainda tem metade de um caminho por percorrer. Mas detesta confrontos. Usa uma pequena pulseira de pingentes vermelhos no braço direito. Considera que a mesma lhe dá invisibilidade, uma posição inocente sobre todas as coisas que ele na realidade quer ignorar.

Está prestes a entrar neste local que é só seu. Faz uma pequena pausa para recordar uma conversa que havia tido momentos antes, no café da esquina. Um homem com quem normalmente só trocava olhares, naquele dia encetou conversa consigo. Começou pela futilidade do tempo abafado, do custo de vida que não pára de disparar. Escolheu manter-se em silêncio. Mas estranhamente, quando aquele homem lhe contou que estava farto das coisas simples da vida, e que ponderava seriamente começar a ser o contrário do que até aí tinha sido, isso captou-lhe a atenção. Fixou-se na cor dos olhos baça do seu interlocutor. Tinha as mãos deformadas e descoloridas pelo tempo, resguardadas em concha em cima do balcão do café. Reparou ainda que trazia um livro, de capa oculta por um forro de papel tosco e pálido.

Pareceu sentir uma estranha familiaridade com esta pessoa. Quase como se ambos partilhassem alguma coisa que escolhiam resguardar do mundo. E isso intrigou-o e tranquilizou-o ao mesmo tempo. Nada disse ao seu interlocutor de ocasião, limitando-se a um cumprimento gestual, seguindo caminho. Estava ali, agora, para abrir uma porta e entrar naquele pedaço de mundo que era só seu...



Ruacuzuaco

 
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ruacuzuaco
 
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