1. vê
Na mão não há vê de vitória,
os dedos foram todos amputados.
Nos dedos dos pés não há agrados.
Não consigo contar a história.
Falta-me a voz, dedos, memória;
minas e balas de baleados,
de sobra. Cotos envergonhados,
doridos, onde fica a glória?
Um vê que faço, braços abertos,
a cabeça a estragar o desenho.
Mais parecido com um duplo vê.
Vê a dobrar, os olhos incertos
da miopia, que agora tenho.
Nada vejo, sinto, não sei porquê.
2. Placas ou parafusos
Há placas a mortos em cada esquina,
na baixa aquosa de Veneza,
há nomes em fila sem beleza,
pelos vistos, nada se ensina.
Têm uma data que as domina,
uma luta em cada chiesa
ao lado duma vela acesa.
1914-1918, alguém assina.
Só cem anos depois, na Crimeia,
ainda se mata, se odeia…
Esqueçam, desistam, não há mão nisto.
Em Gaza, no Sudão, ou em Troia
alimenta-se a paranoia.
Eu, não desisto.
3. Lua Velha
Dia sim dia sim mais um funeral
de vala comum, sem sequer comunhão,
já não há espaço qualquer, neste chão,
para fazer um enterro normal.
Nada de normal tem isto, é distal
e tão perto do peito, do coração
que tenho no lado direito, na mão...
que já não bate de maneira igual.
Fez-se noite, uma escuridão de pó,
sem estrelas, sem lua em quartos,
sem mesa posta para tomar a ceia...
Nada fica inteiro que não fique só,
tudo é sem. Sem dó, de guerra fartos,
a lua sempre velha, nunca cheia.
4. Parada Ausente
Já fui chamado de camarada,
agora sou apenas um soldado
sem solda, ainda que parado
sem batalhão, vida, nem parada.
Então, deserto, faltei à chamada,
sou cidadão, pai, filho deste fado;
das margens deste rio frio nado,
para qualquer lado daqui se nada.
Fiz a incontinência ao cabo raso
a saudação à saudade da paz.
Fiz silêncio debaixo dum grito.
Cada dia que passo é um atraso
nesta parada que já não se faz.
Um chão falso em que habito.
5. Fraco Capitão
Eu disse ao meu general que não,
não era mais capaz de fazer isso,
que me perdoasse o compromisso,
sou arte de guerra, fraco capitão.
O meu tenente anda com um carão
descontente, o major é omisso.
Os coronéis murchos e sem viço.
Não há quem aprenda esta lição.
Sou objeto repleto, um objetor;
a consciência que tinha, não tenho
e sinto um vazio tão completo.
Tiros aos pratos, tiro-lhes a cor.
Cacos e cacos, do chão apanho.
Aperto o cinto, miro o teto.
6. Mágua
Já fui cruzado, sou um herege,
depende do lado da batalha;
perco sempre que sempre calha
que a morte no campo me elege.
Em cada vida, não me protege
a armadura, a cota de malha...
O kevlar quase só atrapalha
apenas a promessa me rege.
Prometi proteger matar defender...
sobrevida é o que me sobra
na terra, no ar, paraquedas na água.
Já estou certo, apenas, sem querer,
a minha alma nenhum deus cobra.
Sou mágoa.
7. Reduções ao Mínimo Múltiplo Comum
Os voos rasam perto a cidade,
cresce o ódio em cada esquina,
cresce tanto que só se imagina,
os voos voam sem velocidade.
O silêncio entra e tudo invade,
reduz a esperança já pequenina;
não há música, risos de menina,
o ar, o sol, têm ar de grade.
O passo que conheço, é o fantasma,
ou o tambor poluto da explosão
(não tenho memória do meu meio).
Respiro, entre ataques de asma,
sem os meus momentos de inspiração.
Expiro este ar que tanto odeio.
8. recruta
Já matei mais um, vi-o a cair,
a bala bateu secamente, dura,
durante a queda sem estrutura,
morte violeta, já sem porvir.
Esse monstro que mostro, sem me rir,
tombou, coisa fraca, não se procura,
acabou na terra, esterco, agrura,
orgulho que me calha, flor a abrir.
Ninguém me avisou na recruta
do perfume a pólvora, a grito,
do quanto ele inebria, vicia.
Esta dependência pura, bruta,
hábito perverso que habito,
O meu pão nosso de cada dia.
9. bivaque
Pediram-me a auréola do santo,
mas sou todo feito de vil pecado.
A santidade mora mesmo ao lado,
mais do que risos, conheço o pranto.
Estacionado de pelotão ao canto,
espero pelo tão infinito brado.
A luta, sem metáfora, é o fado
e de terra desfeita é o meu canto.
Se o ataque é a melhor defesa,
nunca sei muito bem o que defendo.
Será a defesa, o melhor ataque?
Baioneta erecta, sempre tesa,
sangue a escorrer, negro, ardendo.
Não tenho auréola, só bivaque.
10. Traumas da carabina
no meio do mato o início
carabina rente ao corpo a tremer
e sob o céu de balas sobremorrer
assim me dou ao sacrifício
no fim da linha um precipício
que ainda não acabei de fazer
tremo na terra que me há de comer,
um tremor de ódio, de hospício
pesadelei pesadelos modernos,
armadilhados, sonhos, nem vê-los
esperam-me traumas da carabina
rezo para que não sejam eternos
que só pesadelo tais pesadelos
e contados, ninguém os imagina
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não