1. soneto impensável
Hoje amaldiçoo o pensar,
tudo o que se passa na cabeça.
Maldito tudo o que se esqueça,
infeliz é todo o cogitar.
Do pensamento há de acabar
por ver o ar do que se padeça.
Horrores de que se apodreça
terão o seu par.
Hoje é um dia sujo e triste.
hoje o poema é de terra,
é lixo, fétido excremento,...
maldito tudo o que resiste,
quem inventou a primeira guerra.
Maldito todo o pensamento…
2. Burros a caminhar
Fui a pé de Gaza a Kiev
por caminhos de terra batida.
Fui na fé de quem já não deve
esperar traços de vida.
Tudo parece negro e breve,
a vida toda descolorida
e há todo um peso no leve
que a leva com ar de escondida.
Fui a pé, não há aeroportos
nem barcos velozes de recreio.
Tudo se tornou parado, lento.
Por todo o lado cheira a mortos
e achei novo nome pra feio...
Este caminhar tão violento.
3. promessa
Ai, se eu te apanho na rua
é certo, estás fodido comigo…
Não há buraco que seja abrigo
se esta merda se continua.
Armado com a maldade crua,
ódio, magia negra, perigo,
ai se te apanho, sou inimigo,
ar envenenado que te polua.
Estava tudo calmo e tranquilo,
eu a ver o mar, bandos de aves,
a primavera colorida em flor.
Para quê começar tudo aquilo,
e acordar os meus mais graves.
Ai, se conheces este meu terror…
4. Murros das lamentações
ui, ui, eu rezar pela morte fui;
infiéis todos os que são demais,
os de deus filhos aos montes Sinais,
ui, arde o olhar e diminui.
Ui, ui, eu hei de ser o que não rui,
deus protege os que lhe são iguais.
Ai de quem por prata troque os pais,
quem nega e renega e anui.
Hoje, o muro chora de volta,
tem um frio e salgado orvalho.
Respondo sem bombas, um trevo só.
Ui, ui, as preces andam à solta,
olho por olho, cego soalho.
um dia destes o muro é pó.
5. Faltam seis bonecas
A matrioska ali na sala
é uma só boneca, vazia,
que desconhece noite e dia.
Escolhe, com os olhos, ignorá-la.
Tem o silêncio de que não fala,
e uma só casca, pele fria,
uma culpa só que não expia
ao redor duma incomum vala.
E não há mais bibelots por ali,
até o pão é dívida, penhor.
A água, inquinada, não dá vida.
Não há canto, ninguém dança, sorri,
tudo é pertença de um senhor.
Os bilhetes são todos de ida.
6.Trincheira imperial
Fomos mandados a cavar covas,
na linha de fogo inimiga,
de picareta, à moda antiga
e pá, como se fossem covas novas.
E esse equador, de que não há provas,
fez dum batalhão nova formiga,
que escava, na lama que a abriga,
desertos em que não há desovas.
Chove, chove artilharia pesada,
uma cidade caiu, mil mortos
e feridos que ninguém procura.
O silêncio que se faz na estrada
de buracos feitos todos tortos,
cavámos a nossa sepultura.
7. Mundial de dois mil e vinte e quatro
São dois, mil, ou bem mais, de duzentos
anos-luz apagada, não é ela
tempo, centímetros passarela
de fins, todos os segundos lentos.
São dois, mas a menos, de lamentos.
Sem bela janta à luz da vela
de reza, mãos unidas pela
alma que duvido, céus cinzentos.
São dois, não contaremos’ segundos.
Proponho magia, contar atrás,
a dois mil e catorze, ou outro tal…
Os físicos defendem outros mundos.
Eu, poeta, defendo também paz
mundial.
8. Quem vai à guerra dá e leva*1
Lembra, não sou saco de pancada,
deixa-me bem apagado no chão,
a esvair, coisa ensanguentada,
certo de que, para a morte, me levam.
Se me levanto de cegueira dada,
foge de barco, ou de avião,
que mais do que cego da porrada,
vira um cepo cada minha mão.
Não há gaze no mundo que pare
o sangue dessa hemorragia,
nem um "penso logo existo"*2 nenhum.
Deixa-me bem apagado de ar,
reza que só escreva poesia,
ou mato a fome deste jejum...
*1 – Provérbio português ; *2 – Frase de Renné Descartes no seu Discurso do Método
10. Cessar Fogo
Venha o gelo, a hipotermia
o Bóreas de noite e de dia,
acabe de vez até a paixão.
Cesse o fogo de cada canhão.
Dois paus em mui agitada fricção,
isqueiros a gás, a ebulição...
Por mim tudo frio se comia,
podia acabar a poesia
e toda a arte. O fogo cessar...
Os pirómanos todos na pira,
usar o poder para acabar
com a miséria e a mentira.
Acabar de vez até com a ira...
E amar.
9. raio esparta isto
E, eis que o terror da guerra, vil,
encontrou-se co'a guerra do terror.
Todo o dinheiro contra deus, rancor,
multiplicado ao expoente mil.
Fosse em março, seja em abril,
são as mesmas hóstias em bolor.
É só mal, seja em que mês for.
Um pecado só, uno, num ardil.
Se até no Marão ando farto,
como será a Europa de Leste?
Ou no Oriente medial? Vão
se partir, romano, esparto...
Não há na guerra Homem que preste.
Não inocentes. Não há nação...
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
Este texto pertence ao parvalhão do Cheiramázedo.
Foi todo feito pela avantesma, como comentário a outros poemas alusivos à guerra, escritos por outros poetas deste site a quem agradeço imensamente a colaboração.