- Um mar por favor.
Preste atenção ao que vou dizer, acha que alguém pode pedir um mar? A vida não é mascar chiclete e já está. A vida é a soma de todos os mares, mesmo aqueles que acordam de repente péssimistas, sem talco para as feridas.
Esta gaja droga-se. Pica-se. Puta-se. Ninguém pode pedir um mar. Nem praia nem o raio que a viole. Ela insiste e volta a pedir
- Um mar por favor.
Há razões para se desistir da vida, alfinetadas que nos tiram o prazer. Esta rapariga droga-se? O mar não pode ir a lado nenhum. As putas podem. Metem-se nos carros de qualquer um e voltam menos desejadas, descompostas da cintura para baixo.
A literatura repete-se a cada novo milénio. Para o ano tenho marcada uma queda livre de um sexto andar. Mesmo frente à biblioteca. Sonhos são sonhos. Evidências nem a pata de um burro. Se eu bebesse um gole de tintura tratava-me por dentro como não tenho aguento a democracia. Ouviste?
Para quê querer um mar se ele está sempre aqui? O afogamento é uma carta do feiticeiro. Esta não quererá certamente um sufoco igual ao do pequeno joão que largou a mão da sua avó para sentir o que é ter água pelo pescoço.
A verdade e a mentira são duas irmãs gémeas, embora que: uma é puta e outra não. E a Mãe Vida sofre com isso. Repara como ela chora. A rapariga caminha nua na praia.
Se os cães soubessem a que horas ela vai, iam espiá-la e contemplá-la às escondidas.
O mar acolhe todas as alcunhas, desde os Pereiras, os Macedos, os Gomes, os Pedrosas. Sofre-se com os sinos, com a derrocada do prédio do lado, com os epitáfios das campas.
Para quê mais água se a cerveja faz melhores progressos?
Chamo-lhe Maria e, como todas as Marias, esta também sofre num canto da casa antes e depois do croché, corta os lábios num copo esquinado.
Parte da imaginação tem um gosto proibido, um sentimento cigano.
Maria, de santa tem o seu nome, seu corpo: uma bacia de roupa por lavar.
Talvez seja por isso que ela queira um mar. Para se lavar por dentro, cicatrizar alma com escamas de peixe.
Alguém lhe fez uma surpresa e ofereceu-lhe um aquário para remedeio.
O aquário tinha um único peixe que dava com a cabeça minúscula no vidro. Com a água suja mal se percebia o fundo.
- Um mar por favor
Deixaram-lhe de responder, de lhe perguntar porquê porquê porquê.
Maria sentiu-se verbalmente nua e, como achada na imensidão do espaço, meteu-se dentro do aquário e fechou o tampo.
Mais tarde alguém reparou nesse facto:
- Este aquário tem um peixe muito bonito. A que espécie pertence?