O cão tirou o morto debaixo do entulho. Por sorte o morto não foi triturado no camião do lixo. O cão é inteligente e arrastou o homem para o meio da luz da calçada.
O mundo é grande, tem planícies e vales, montes e caminhos desfeitos, tem arrozais e pomares e, o homem, por certo triste, veio morrer aqui no sub-colo da humilhação.
Junta-se gente em volta do recém-cadáver, dão palpites sobre o desfecho da cena. Parecem convidados numa mesa de um restaurante dando palpites sobre o resultado da selecção nacional. A morte havia de ser sempre limpa. Julgo que faltou colocar essa alínea na tábua dos mandamentos.
Ou será que se apagou com os tempos?
Morrer na lixeira é um assunto que não envolve nem padre na frente nem tiro de salva nem bandeira no mastro. Morrer na lixeira são como os restos de carne após operação ao fígado.
Se o homem pudesse repetir a cena da morte, certamente escolheria uma cama. Nada melhor do que morrer numa cama com o quarto carregado de rituais e bafos de incenso vindos da cómoda.
De preferência com o pijama vestido.
O pijama é algo que nos pertence, conhece, e tem por obrigação esconder a rudeza do corpo. O cão acompanha o homem e a noite, provoca cio na lua com os seus latidos.
Tive um amigo na primária que chorava sempre. Sua mãe obrigava-o a ter orações em dia, que se não o fizermos, encarnaremos num carneiro ou formiga ou o que calhar.
A miudagem é sádica e diz que há um cão, numa rua paralela à minha, que é parecido com o porteiro da escola.
O que morreu numa zaragata com dois individuos perto das onze da noite. Que depois de morto deram-lhe um pontapé na barriga e levaram-lhe a orelha esquerda.
Um homem na noite não sabe o que faz. O cão sim, segue o cheiro das ervas nos beirais (foi o que um cão me disse outro dia no armazém dos tecidos).
A do segundo andar diz que viu tudo:
- Bebeu uma garrafa inteirinha de rum e tombou falecido.
Um ex-militar que estava à janela desdisse:
- O homem caiu do sétimo andar com uma bíblia na mão.
De facto havia páginas soltas espalhadas pelo beco. Eu tinha esquecido, o morto estava num beco, o que para investigação pode ser um indício de assassinato.
Os becos são íntimos da morte, são locais de eleição para se apertar o pescoço a um preto, branco ou mulato.
Os criminosos são conceptuais: o beco sabe apreciar uma boa navalhada, uma boa mancha de sangue no chão, os vestígios misturam-se com outros vestígios e, ao criminalista, resta-lhe confrontar cabelos.
As pessoas abandoram o local sem declarar um decassílabo de tristeza.
O morto foi levado directamente para a cova sem direito a choro familiar.
O criminalista apontou o dedo à cabeça indicando suicídio.
O cão, depois do beco se tornar de novo escuro, saiu vagarosamente.
Acendi o cigarro que tinha deixado a meio enquanto apreciava a vizinha da frente, em camisa de dormir, a passar da sala para a cozinha, da cozinha para a sala.
O cigarrou chegou ao filtro amarelo e com ele terminei um pensamento:
Um cão é sempre inocente. Ainda para mais um pobre cão que não tem a orelha esquerda.