Eram os anos 70, e o tempo esse farsante me faculta não dizer exatamente o ano. Eu fazia a Faculdade de Biologia numa cidade do interior do Estado de São Paulo (BR).
A cidade tinha uma geografia íngreme e um clima frio e de nevoeiros eram usuais.
Eu morava de aluguel com mais dois estudantes numa edícula nos fundos da casa de uma família tradicional da cidade que cuidava de nós como filhos postiços e nos emprestava sua posição social como um tipo de aval em branco.
A casa ficava na parte mais alta da cidade, numa esquina entrel duas fortes ladeiras e a entrada de minha casinha era separada da casa principal e ficava bons metros adiante e abaixo já no meio da quadra de uma rua transversal.
Já a entrada principal era numa avenida, com duas pistas separadas por um robusto canteiro central, arborizado e gramado.
A pista do lado da casa era a ascendente e do outro lado, a descendente, margeava um campo de grama e barro em declive sem nenhuma construção.
Apenas ao longe e na base do declive outra rua onde acontecia a feira livre das quintas feiras. Mais adiante via-se também o complexo da universidade onde estavam todos os cursos exceto os da área biológica e médica.
Na mesma avenida, quatro casas mais abaixo, ficava o Diretório Acadêmico da Faculdade de Biologia (DA), assim quem vinha subindo a rua, passava na frente do DA antes de chegar na esquina onde ficava a casa.
No sentido contrário, descendo à margem do campo aberto, duas quadras à frente, virando à esquerda, passando mais uma esquina encontraria a Faculdade de Ciências Biológicas onde funcionavam os cursos de Biologia, Medicina, Odonto e Psicologia num anexo do Hospital Municipal.
Eram tempos dos rigores dos regimes militares, nada se podia falar abertamente, tudo era sussurrado depois de bem se olhar à volta, ainda que não houvesse qualquer interesse político na conversa.
Era meu costume, diariamente, passar na casa do DA antes de ir para minha casa na volta das aulas.
Uma segunda feira quando passei, havia uma pequena multidão na porta. Tentei entrar e fui impedido por homens de terno e óculos escuros. Eu disse que precisava apanhar um livro na pequena biblioteca do Diretório, mas debalde, não consegui.
Fiquei pelas imediações tentando avistar alguém conhecido e logo eu avistei um colega de classe. Fui ter com ele e ele me disse que era a polícia (DOPS - uma polícia política) e que o Pedro que era o presidente do DA havia sido preso. Com ele, outros dois, e chegaram a uma casa onde havia um radioamador (PX), panfletos e uma série de coisas subversivas (?).
O diretório estaria sob intervenção da reitoria e fechado.
Fiquei inconformado, lá era minha base de apoio, havia mesa de bilhar, pebolim (totó), livros, xerox e garotas.
Marquei um horário e fui com outro amigo falar ao Reitor da faculdade. Não podia ser assim, se o Pedro era subversivo, os demais alunos não podiam ficar sem seu DA por causa dele. Por mais de uma hora argumentei até que ele disse: E quem terá coragem de assumir a direção se o devolvermos a vocês?
Num ímpeto, eu disse: EU!
Reabri (os funcionários o fizeram) a casa à frente de um diretório fantasma que continuaria vazio por mais de quatro semanas, pois os alunos amedrontados nem sequer passavam na frente.
Um dia entrou uma garota, já passava das 19 horas e fecharíamos em breve (às 20 h). Ela era aluna de Psicologia. Passou pelos funcionários e se dirigiu à mim, perguntando até quando eu queria administrar aquele cemitério vazio mesmo de defuntos.
Eu até pensei em argumentar, mas ela tinha razão.
Assumi e apenas dei a chave aos dois funcionários (funcionários pagos pela faculdade) e passava lá depois das aulas, limitando-me a, nas tardes, sentar numa poltrona e estudar.
Por horas, ela me falou de muitas coisas, coisas sobre política, sobre pessoas torturadas, sobre a falta de liberdade de falar, fazer e mesmo de pensar diferente ao estabelecido.
Ela acendeu uma chama, que se tornou um incêndio dentro de mim, muito além do que ela esperava - como me confessou um dia - quando soube que eu passaria a escrever para um jornal crônicas sobre a vida de estudante.
Além disso, e mesmo antes de ter uma coluna no jornal, eu fui nas classes, e com o mesmo argumento que falei ao Reitor, falei sobre a necessidade de mantermos nosso DA, falei de liberdade sem olhar o lado político das coisas e que chegar na classe junto com o sinal de entrada e sair ao da saída, não era verdadeiramente estar numa universidade.
Organizei festas e encontros sociais e culturais. O diretório renasceu e maior do que era.
Depois disso, um dia sentou-se ao meu lado na classe, um rapaz que eu não conhecia, após me cumprimentar, puxou conversa e assistiu a aula ao meu lado.
Ao final da aula, perguntei se ele era novo naquela sala ele disse que vinha do noturno e convidou-me para almoçar. Pagou-me uma cerveja, era muito e estranhamente cordial. Em dado momento disse-me se eu podia falar-lhe sobre as células ou alguma delas em especial. Eu disse que até poderia, mas bom mesmo em citologia era outro aluno, o Hugo.
Ele perguntou se eu sabia como ver uma das células e eu disse que na nossa faculdade não, mas que ele falasse com o professor e ele daria uma autorização e ele poderia ir ao laboratório na USP e usar os microscópio eletrônicos de lá. Via-se cada organela das células.
Ele parecia espantado e perguntou do que eu falava. Eu disse, ora das células. Células humanas ou não. De citologia. O que mais ele estaria querendo saber? Ele deu muita risada, me agradeceu, pagou a conta e disse estar meio atrasado e que nos veríamos dia...
Quando à noite eu ia para casa, parou um GM Opala preto ao meu lado. Desceram dois homens de terno e me disseram que os acompanhasse, entrando no carro. Eu pensei em dizer não, mas suas posturas não mostravam que aceitariam negativas.
Começamos a nos dirigir para as imediações da cidade e antes de sair da parte urbana o carro parou próximo a um bar e de lá veio mais um deles. Para minha surpresa era meu anfitrião do almoço, agora de terno.
Ele disse aos demais que me deixassem sair... que se eu fosse subversivo, era o mais tolo que ele já conheceu.
Abriram a porta e me deixaram ali mesmo, quase 3 km de casa. Um dos primeiros ainda me deu um soco no estômago assim que desci e disse que eu chamava muita atenção.
Caminhei duas horas e com dificuldade de respirar, indignado, mas de certa forma agradecido por estar vivo e livre.
Falei com ela sobre o ocorrido no dia seguinte e lhe contei que eu queria revidar, que ficara revoltado e pensava em fazer mundos e fundos.
Mas ela, muito me disse dos perigos, que eu não deveria ir além dos limites. Que na realidade devia pensar que já passara. Que eu devia apenas pensar no convívio universitário, no futuro. Que deveria apenas usar a 'caneta' como arma, usar a coluna do jornal e escrever ideias escondidas.
Ela era meu contrapeso para não ir além de onde deveria. Ficamos grandes amigos, nunca tivemos nenhum relacionamento amoroso.
Eu, ao final daquele ano, prestei uma prova interna para ingressar em outro curso que as matérias que já aprovara fossem aproveitadas e fiz matrícula no segundo ano de Odontologia. Faria no ano seguinte a continuação da faculdade de Biologia pela manhã, à tarde duas matérias de adaptação (as do novo curso que não tive em Biologia) e a outra faculdade, Odonto, à noite.
Ao final do ano me desligaria do querido DA, não havia mais tempo para nada.
Nos últimos dias de novembro, um certo dia ela, sem ter dito nada antes, não apareceu (ela ia lá todos os dias), nem no seguinte, nem nunca mais apareceu.
Ninguém soube me dizer dela.
Com a chegada da internet e sua formatação caminhando como a conhecemos hoje um dia escrevi o nome dela num mecanismo de busca... Nada, mas achei um rapaz com o mesmo sobrenome, que era incomum. Mandei-lhe uma mensagem e perguntei se ele a conhecia.
Ele me respondeu que sim e não. Sim porque eram parentes e não porque nunca a conheceu ou lembra dela. Ela era a tia dele, soube que nos anos 70, quando ele tinha pouco mais de 1 ano, ela um dia teria saído da casa dela para ir ao mercado e nunca mais voltou ou souberam de seu paradeiro
Depois de cinco anos, enterraram um caixão vazio, quando a justiça finalmente a declarou morta.
A ela dedico este poema, onde quer que esteja.
Em plena tormenta ela era qual um sol na noite
Farol que nunca se apagou na minha escuridão
Sua rebeldia era verdade, face a tanta mentira
A outra face quando muitos não quiseram ver
A estrada ao não paraíso, anarquista e trágica
Utópica rosa libertária, se o exílio não a fez flor
Tampouco podou-lhe os espinhos e as palavras
Eram os anos 70, o chumbo na novela histórica
Era parte da circunstância social ser perverso
Vigiando no menor descuido, uma palavra mais
Corria-me nas veias o fogo sagrado da rebelião
Ela era meu esteio, meu fiel e a minha guarida
Sempre ocupei meu lugar, sem pedir permissão
Ela trazia-me o limite seguro, na palma da mão
Em vez da espada deu-me papel e esta caneta
Em vez de bombas, deu-me o poema libertário
Com os quais, a cada dia abato meus inimigos
Mas aquela manhã ela não veio, ou a seguinte
E nunca mais, ficando a questão irrespondida
Como seria seu vingador, de sangue ou tinta?