Como professor de História, tendo que trabalhar com duas matrículas para sobreviver (nos municípios de Itaboraí e São Gonçalo, ambos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro), nunca me sobrava muito tempo para nada. Os períodos de férias eram aguardados como o dia de um parto; sua espera era mesmo uma pesada gravidez.
A certa altura de minha vida e carreira, se é que posso utilizar esta última palavra para designar minha lide de historiador e docente, resolvi me dedicar a alguns projetos de cunho particular, pesquisas de variado âmbito, retomando uma atividade que infelizmente só havia realizado quando de minha formação como historiador, nos tempos ainda mais magros de corredores da Unirio e seu bandejão lotado.
Um de meus projetos era fazer o levantamento de alguns pontos históricos dos municípios de São Gonçalo e Itaboraí. A ideia era elaborar uma proposta de roteiro turístico conjunto envolvendo os pontos de interesse desses municípios limítrofes, com o diferencial de um forte embasamento geohistórico, correlacionando pontos, famílias e eventos, buscando, dentro do possível, sintetizar uma coesão temática e temporal que lhes conferisse relevância e atratividade. Algo, por sinal, nunca feito sobre os patrimônios geohistóricos de tais depauperadas municipalidades.
Num de meus períodos de férias, no ano dois de minha pesquisa (que, é forçoso afirmar, corria por minha conta, e ao sabor dos ventos de minha intermitente disponibilidade, disposição e recursos), resolvi retornar à Fazenda Colubandê, ponto histórico de São Gonçalo. A fazenda, com sua casa grande, capela e uma senzala subterrânea, é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e possui uma história agitada de trocas de donos – cristãos novos, jesuítas, um militar barão e sua descendência – com toda a carga de traições e mistérios que esse tipo de dinâmica sucessória pode envolver.
Já estivera por algumas vezes na fazenda. Mas me ocorrera uma ideia de algum espalhafato: ir até lá durante a noite. Sim, pois imaginara a elaboração de um roteiro turístico noturno contemplando tal ponto, uma espécie de imersão na realidade da escravidão, com o adicional da experiência à luz de tochas e velas – com direito a encenações, cantorias e tudo o mais. Assim, mesmo ciente dos riscos, pois o tráfico de drogas estava já espalhado por quase toda a São Gonçalo, e a fazenda, que já fora uma base da Polícia Florestal em tempos recentes, estava agora abandonada – lá fui eu para a minha aventura.
Eu aparentemente escolhera a noite certa: A temperatura era agradável e, num céu límpido, uma Lua minguante aquarelava tons interessantes ao lugar. Eu avançava elucubrando enquadramentos e cenas para já compor um provável vídeo de divulgação do roteiro turístico.
Ao descer para a antiga senzala, que espraiava-se numa espécie de porão, iluminava a trilha com a lanterna de meu celular, sempre imaginando-me na pessoa de um turista que ali descesse pela primeira vez. Ao fundo daquele recinto, enquanto mirabolava possibilidades cênicas, percebi uma presença: um homem assentado no chão, talvez sobre um toco de madeira ou algum tijolo. Ele tinha a cabeça curvada, parecendo dormir. Pelos trajes rotos, me pareceu ser um morador em situação de rua, um sem teto ali abrigado. Fiz menção de retornar, aproveitando que ele parecia absorto em seu sono, para não aborrecê-lo e para poupar-me de qualquer dissabor ou perigo adicional, naquela incursão temerária.
Ao principiar minha meia volta, ouvi em rajada um “bom dia boa tarde boa noite bom homem”, assim, em fluxo. Virei-me e, ao iluminar o rosto de meu interlocutor, faceei uma expressão de riso e pacífica loucura. Cabelos desgrenhados e já mais brancos do que castanhos, olhos arregalados e com aparência de maiores que o normal – se há normais dentre os olhos. Um sorriso largo e algo debochado completava a certamente ensandecida personagem.
– Me perdoe amigo, não queria lhe acordar, não vim fazer mal. Sou historiador e estava fazendo uma pesquisa – vociferei, como uma criança amedrontada diante dos pais.
– Eu não estava dormindo, apenas esperando. Vim em busca de um velho amigo, que conheci aqui neste buraco. Um negro do tamanho dessa noite aí fora... Eu tenho algo para lhe devolver, mas ele teme nosso reencontro. Meu nome é Cambizo.
– Perdão senhor... Cambizo, não é? Eu não sabia que havia alguém aqui. Pode continuar a dormir, eu já estou indo embora, boa noite.
– Espere, tenho uma troca a lhe oferecer. Como você, eu também sou fascinado pelo tempo. É quase minha comida – disse, com um rictus de aparente ironia em seus lábios, o ainda mais surpreendente “maluco”. Imaginei que era mais um morador de rua enlouquecido, e talvez não fosse me oferecer perigo; eu era bem mais jovem do que ele.
Enquanto refletia, estaquei um instante entre os impulsos contrários do ir e do permanecer. Fechei os olhos um instante, já despido do grosso do medo, mas agora confuso pela curiosidade. Ao reabri-los, o homem que estava sentado há uns cinco metros de mim estava agora em pé, há menos de cinquenta centímetros de meu corpo.
– Baratinha do tempo, o tempo é tudo o que temos, o tempo é tudo o que somos – e me tocou.
Senti uma vertigem imediata. Estiquei instintivamente o braço esquerdo, tentando alcançar uma parede para apoio, mas não a encontrei. Flashes pipocavam e eu não sabia se eram em meus olhos ou em minha mente. Nessa vertigem, ainda pude observar algo que não notara, seja pela posição em que estava o indivíduo, seja pela cobertura da penumbra: Cambizo possuía diversos relógios afixados em ambos os braços, relógios de pulso, de variados modelos, alguns aparentando antiguidade e amarrados por barbantes ou finas cordas... Enquanto rodopiava tentando fixar aquele detalhe macabro, ainda divisei aquele ermitão citar, como quem cantarola: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado”. Era um versículo bíblico?, eu me indagava; minhas pernas perderam as forças e eu desabei.
Ao despertar, eu estava sozinho naquele chão húmido. O celular, caído, iluminava o baixo teto da antiga senzala.
... ... ...
O espelho, na volta para casa, dera expansão ou patas ao absurdo: Eu rejuvenescera algo entre 25 a 30 anos.
Após o horror, em rescaldo, considerei vantagem enorme, fosse aquilo o que fosse, o ter rejuvenescido.
No entanto, os dias se acumulavam e eu não sabia o que fazer, a quem falar. Trancara-me naquele apartamento de que eu tinha tão poucas lembranças. Pois o espelho, que me dera a surpresa alegre, logo me intuíra do furto: havia de repente não um detalhe – uma chave de porta perdida, uma nota de dez reais que esquecera em algum bolso, uma data de aniversário cara ou que o deveria ser – havia um vácuo, uma obstrução cognitiva causada pela ausência ou profusão de ausências de memória, de experiências. Eu estava mais jovem, sim, mas não era mais eu.
Eu não estava, assim me parecia com grande, inamissível premência, uma “tábula rasa” a ser livre e graciosamente reescrita; não recebera uma chance milagrosa de re-começar a vida: eu era um frangalho, uma coleção de carências, uma lacuna (des)articulada por lacunas.
Inane, refém de uma inanição existencial, me transformara numa anomalia antropocronológica. A realidade, o que quer que ela seja, ganhou uma outra textura... perdeu consistência, e era então, ou então mais do que nunca, um tecido podre.
Nos dias seguintes, mesmo embotado pela lacuna de memórias, como num surto de alzheimer aleatório, pude reconstruir parte de minha vida e as ações de meus últimos dias graças à abençoada prática de redigir diários. Consultando-os, pude tecer este relato.
Não sei o que acontecerá daqui em diante; mas o absurdo, a flatulência do inverossímil que o universo lançou em meu rosto, precisa ficar relatado. Mesmo erodido, traído pelo tempo, ainda sou um historiador.
Pensei em contatar meus parentes distantes, e mesmo alguma autoridade. Mas a possibilidade de ser internado como louco me horrorizava. E seu eu estivesse realmente louco? Abandonei o emprego na docência municipal, não atendia mais o telefone. Um dia uma pessoa veio bater à porta, à minha procura, uma pessoa que eu não conhecia ou, mais acertadamente, de quem não me lembrava. Ela notara minha semelhança com o “eu” envelhecido. Disse-lhe que eu era um primo tomando conta do apartamento, e que o “eu” a quem ela procurara precisou fazer uma viagem às pressas para Itabapoana, para realizar o funeral de um ente querido e resolver assuntos de herança. Passei a ter medo da reação das pessoas a esse outro eu, a esse não-eu que aquele homem ou demônio (in)criara.
Retornei àquela senzala noutra noite e noutra noite e noutras mais à procura daquele ser, diabo ou sonho que fosse. E foi sempre vã minha caçada. Seu nome, “Cambizo”, não retornava em minhas buscas, negava referências em bibliografias virtuais ou impressas que consultei.
Meu quadro de desmemoriação e inadequação geral piorava. Cessei de procurá-lo para tentar entender ao menos o que me acontecera. Em meio a toda aquela angústia, retomei o estudo do tempo. Agostinho, Kant, Teilhard de Chardin... Confrontando a obscura frivolidade das teorias com a amarga realidade que me esmagava, cheguei a algumas conclusões embaraçosas.
O tempo não nos pode ser devolvido e nem dividido (existir independentemente) de nós. E não podemos ser reinseridos no fluxo do tempo pois somos esse fluxo: Fios de um tecido. Quando cortado o fio, o tecido ganha um buraco, um buraco que não devia existir e que nada pode remendar.
Sinistramente não vivemos no tempo, mas o que vivemos é o tempo; o casamento entre o pretenso fenômeno “físico” do continuum espaço-tempo exterior e independente, e a fenomenologia de minhas internas percepções e vivências, de meu ser-aí, ser-no-tempo, como se eles fossem duas coisas diferentes que se combinam, é ilusória.
Refém de uma angústia avassaladora, tudo que minha frágil razão reprisava era: não há tempo fora de mim, não há tempo fora de mim, não há tempo fora... Aquele demônio, ao me rejuvenescer, não me dera, mas roubara-me vida!
Somos tempo e tempo vivido, pois o tempo vivido, experienciado, realizado, é todo o tempo que existe; assemelhando-se a uma construção subjetiva, é afinal a realização máxima da realidade, tão sólido quanto um tijolo. Tijolo, no meu caso, do qual lascas haviam sido arrancadas, e não se pode, agora entendo e temo, repô-las.
Tal impossibilidade de repor o tempo perdido ou roubado – pois se meu corpo e mente rejuvenesceram, eu não poderia continuar simples e perfeitamente, a partir deste ponto, minha (agora nova) vida? – é perturbadora e fala de sacralidade, de destinação. Como se o tempo fosse uma dádiva contada e confiada a cada ente vivo, como moedas numa sacola; moedas que, de alguma forma, aquele demônio me roubou.
Assim, no tempo não há subjetividade, pelo menos não como estamos acostumados a pensar o conceito de subjetividade. Mas sim materialidade e pessoalidade, pois somos o eixo sobre o qual ele se realiza. Só há tempo se há algo que o sofra, o realize, e isso, por paradoxal que seja, não é uma percepção subjetiva, pois o meu tempo me fora roubado!, e não há ideia que se furte.
Sinto meu ser como que esvair-se neste momento mesmo em que escrevo; é um estado nauseante de embriaguez, um torpor como que narcótico. O furto do vivido, o roubo do meu tempo, do meu ente realizado no fluxo, não foi certamente completo – ou eu teria expirado no chão frio daquela senzala. Mas muito me fora tirado, e quem sabe o quanto me resta?