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Em pé na calçada, e espremido numa multidão de marmanjos engravatados e de discretos tailleurs e uniformes das secretárias e funcionárias; moças lindas, perfumadas, esguias e alongadas pelos saltos scarpin verniz. Naquele momento quase todos tinham a mesma intenção; à volta ao lar, menos eu, mas isso não vem ao caso, o que importava é que aguardávamos pacientemente o sinal verde do semáforo. Inda mais agora, que os técnicos da engenharia de tráfego instalaram em caráter experimental os tais counters junto às sinalizações verticais, se tem o tempo cronometrado apenas de sessenta segundos para se atravessar pela faixa de pedestres as quatro pistas largas da avenida, ela que é a principal via que rasga o centro comercial da cidade ligando as zonas norte, oeste e sul, terminando no lado mais leste, na litorânea; a outra que serpenteia o lado norte da baía percorrendo-a desde o cais na zona portuária até as praias ao sul e oeste da cidade, e depois permitindo a interligação com todos os municípios.
Diariamente neste horário de rush as vias centrais são mesmo movimentadíssimas, normalmente o trânsito fica apressado, nervoso, e o excesso de sinalização acaba por embaralhar mais ainda. Já não sei se; se ganha ou se perde com tanta modernidade posta nesses monitoramentos, sinto que tecnologia está cada vez mais a serviço da cidade, com os gráficos estatísticos de fluxo de trânsito do que com o bem estar dos citadinos. A cidade é esse organismo vivo que não pode parar, e por isso tratado tudo e todos linearmente num gráfico. Acredito até que a preocupação com os indivíduos seja insignificante, no entanto; somos as células, o principal organismo vivo, que faz a cidade viva.
Noutra ocasião, no mesmo local, estive reparando que o tempo de travessia para uma pessoa andando a passos de normais a ligeiros, é ínfimo para se fazer todo o trajeto num só golpe, impossível de ser completado no tempo estipulado, por isso; inábil a idosos, cadeirantes, gessados, e deficientes visuais. Vi que os obrigavam a ficar esperando um novo tempo na faixa central entre as pistas para poderem completar a travessia sem o risco de serem atropelados pelos afoitos motoristas.
A educação do trânsito aqui é péssima, e as autoridades não tomam medidas coercivas sérias para coibir os abusos praticados pelos condutores, ‘os maustoristas(sic)’ de toda a sorte de veículos, cujas imprudências aleijam e ou ceifam vidas inocentes. Infratores contumazes pela falta de uma lei severa sabem que ficam impunes de condenação, ou quando muito; punidos com multas de valores tão ridículos que praticamente incentiva-os a outro delito grave, ao invés de respeitarem.
Faltavam quinze segundos, quando meu olhar advertido pelo sentido de percepção flash das coisas do cotidiano, me chamou à atenção para o outro lado da calçada. Um homem saltara do taxi, e caminhava, quando de repente cambaleou, caindo entre uma grande lata de lixo, sacos com restos de comida postos fora pelos restaurantes, e o poste de iluminação na esquina duma pequena ruela com quiosque de flores no meio e que bifurcava na via principal cuja iluminação já era precária, devido uma lâmpada apagada. Alguém mal intencionado havia quebrado-a tornando o lugar por natureza deserto, mais ermo ainda do que de costume. Foi quando vi dois vultos aproximarem-se, e revirava os bolsos do homem que parecia não mais agonizar. Sorte que apareceu repentinamente uma viatura policial, flagrando-os e prendendo-os. Simultaneamente, chega outro socorro, a ambulância com paramédicos. Mais não deu para ver, pois o fluxo de veículo aumentara a frente por causa do congestionamento.
Como sempre, o centro da cidade esvazia-se rapidamente poucas horas após o término do expediente comercial; bancos, lojas e escritórios. Rapidamente as filas de passageiros nos terminais dos ônibus vão diminuindo, e outras no plano horizontal vão se formando nas calçadas, de gentes de rua, fétidas, e seus panos velhos sujos enrolados pelo corpo, roupas surradas, trapos de cobertores baratos. De destinos ignorados uma grande população de rua aparece como saídos de tocas, como ratos. Chegam parecendo formigas gigantes carregando folhas nas costas, eles, pedaços de caixas de papelão e outras tralhas, êxodo de um amontoado de velhos e jovens; homens, mulheres e crianças que vão se espalhando pelo chão, território demarcado, perigoso, quase sagrado, e que é disputado às vezes com a morte de um invasor.
Estão em toda a parte, nas praças, debaixo das passarelas de pedestres, viadutos, preferencialmente no centro, mas já começam tomar de assalto os bairros circunvizinhos ao centro da cidade, e é caso sabido das autoridades que fazem ’vistas grossas’. É um processo de descaso e permissividade irritante e nojenta, nada fazem os agentes do serviço social, no mínimo recolhê-los, encaminhá-los a instituições de apoio e reabilitação e desintoxicação de álcool e drogas, mas não; deixam proliferarem nesses guetos de asfalto, mendigos, drogados e prostitutas decadentes que optaram viver em grupos para se protegerem do frio, da noite e de uma infinidade de maus tratos que sofrem dos vândalos noturnos. Por isso é que cada vez mais se instalam em lugares mais movimentados, debaixo das marquises, nos bancos de espera; lugares que fazem de camas, alcovas e lares, os cantos das paredes dos prédios e canteiros; fazem de banheiros. São locais que fedem a urina e fezes, o cheiro é nauseabundo até para quem passa ao largo ou do outro lado da rua.
Voltei o olhar o homem caído. Ao sinal verde, caminhei ligeiro para o local onde ele estava, e mesmo impedido ante a fita de isolamento, deu para eu notar que ainda estava lá, e apesar de estar debruço, talvez do mesmo jeito que havia caído, dava para ver que era um idoso, aparência de bem cuidado, cor parda, cerca de setenta anos, vestindo terno e paletó cinza claro, sapatos pretos, meias brancas, ao seu lado uma pasta de couro cru que o policial abrira e olhava alguns documentos. Pegou-os e caminhou na minha direção, onde estava mais iluminado. Aproximando-se, cumprimentei-o e perguntei o que houvera com o homem, pois o vi soltando do taxi, deu alguns passos e caiu, estando assim a mais ou menos um minuto, o tempo do semáforo mudar de cor. Respondeu-me, que de acordo com os paramédicos ele está morto, e que constará no relatório do atendimento médico e do boletim de ocorrência policial como sendo enfarto radical do miocárdio. Conforme o laudo; quando ele bateu no chão, já estava morto. Disse-me que como policial e acostumado com o triste cotidiano, esse o deixou estarrecido por um detalhe; de acordo com os documentos que havia verificado, hoje tinha sido o primeiro dia dele como aposentado.
Agradeci as informações, pois agitaram a minha curiosidade desde lá do outro lado da avenida com o semáforo vermelho. Segui o meu caminho, fui para o meu bar preferido, sentei à minha mesa preferida, e bebi minha cachaça preferida com os meus amigos preferidos... Soube depois pelo dono do estabelecimento que o morto também era freqüentador assíduo, mas num horário mais cedo.
Bom, foi igual jogo cantado, coisa anunciada; bola cinco, caçapa do meio, e foi pro saco. Ele era a bola da vez. Olhei pra mesa e estavam lá a seis e a sete. Quando a sinistra entra no jogo não adianta mudar de bar nem de mesa, e quando o taco está na mão ‘dela’, é sempre uma sinuca de bico. Por via das dúvidas, sugeri que voltassem todas as bolas pra mesa. Pra ganhar tempo.
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