Prosas Poéticas : 

PONTO FIXO

 
.
.
.
Desde muitos anos vou e volto pela mesma avenida, trajeto obrigatório; de casa para o trabalho, do trabalho para casa.
O comércio que frequento fica do lado oposto, depois da praça.
Diariamente, antes de eu dobrar a rua transversal, na esquina em frente à praça; estática como se fosse uma pintura em tela viva, lá estava ela, sentadinha numa pequena caixa de pinus, destas que acondicionam e transportam frutas.
Ela era só uma menina, uma criança, com cerca de seis, sete anos, não mais. Nas mãos, outra caixa, esta de papelão cheia de balas, guloseima exposta à venda que ela oferecia a quem passasse por ali. Fazia isto somente com um olhar. Olhar cabisbaixo, lacrimoso, eu nem precisava fitar muito para sentir que ela era infeliz. As cores das guloseimas eram muito mais coloridas do que seu velho vestidinho, manequim tamanho maior do que o seu corpinho, talvez ganhado em doação de outra criança maior em tamanho e posses. Eu parava ali todos os dias, nossos olhares cruzavam, ela nada dizia, eu nada perguntava, pensávamos que éramos mudos. Pegava algumas balas e pagava com moedas num valor muito superior que o custo, e seguia o meu caminho. Não era esmola, pensava estar fazendo o meu papel, ajudar, isto é: comprando o que ela vendia, sem me preocupar quem era.
O meu olhar acostumou-se àquele quadro.
O tempo passou. Passou tão rapidamente como passa a areia entre os dedos, e na mesma velocidade, deve ter exaurido a vontade dela em vender balas. Um pouco mais, um véu criou-se entre a imagem e meus olhos. Também não era mais obrigatório eu passar por aquela avenida, mas por contumácia ou força do hábito que tivesse, mas persistia. Numa determinada tarde, meu olhar envelhecido ou viciado, nem percebeu que aquela menina, passara de casulo para libélula, ela já era uma mulher e eu nem notei. Desperto por essa metamorfose... Cumprimentei-a. Estática na mesma esquina ela permanecia. Sua resposta surpreendeu-me:
- Está a fim de um programa tio?
Lamentei não ter feito mais por ela antes.

contei-porai blogspot com
 
Autor
ZeSilveiraDoBrasil
 
Texto
Data
Leituras
519
Favoritos
7
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
82 pontos
8
9
7
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 27/06/2023 07:41  Atualizado: 27/06/2023 07:41
Usuário desde: 28/07/2009
Localidade:
Mensagens: 10794
 Re: PONTO FIXO
Muito interessante esta prosa do amigo. Ao longo da vida tanto passa pelos nossos olhos, se nos fosse possível concertar o Mundo, ele seria com toda a certeza melhor, no nosso pensamento fica sempre essa sombra nostálgica ao sentirmo-nos impotentes, e sombriamente aceitamos que pouco ou nada podemos fazer. O Mundo é um mar tenebroso, onde a vida só para alguns floresce.

Um abraço estimado amigo
continuação de boa semana
saúde.


Enviado por Tópico
Mcris
Publicado: 28/06/2023 14:07  Atualizado: 28/06/2023 14:07
Da casa!
Usuário desde: 17/11/2017
Localidade:
Mensagens: 248
 Re: PONTO FIXO
Uma triste realidade!


Abraços amigo poeta.


Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 28/06/2023 19:40  Atualizado: 28/06/2023 19:40
Administrador
Usuário desde: 15/02/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3764
 Re: PONTO FIXO p/ ZESILVEIRADOBRASIL
olá ZESILVEIRA

teu texto, no meu ponto de vista, traz à superficie não só questões individuais de uma experiência contada na 1a pessoa, mas também leva à reflexão de quem lê.
vai muito além do ficar chocada/lamentar esta dura realidade social...deixa latente na mente se o "ponto fixo" pode ou não ser "ponto de viragem"

obrigada pela partilha

atenciosamente
HC


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 28/06/2023 19:54  Atualizado: 28/06/2023 19:54
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5848
 Re: PONTO FIXO
Lembro que te contei sobre o tempo em que trabalhei com menores de idade que viviam à margem do bem estar social. Trabalhei em coordenação desde casas de abrigo à unidades de internação para menores infratores. Na época resgatávamos das ruas a clientela que tão bem discorre em teu texto, Zé e em algumas situações não dava para segurar lágrimas.
Bem contemporâneo seu relato, mas na maioria das vezes não dá pra fazer muito por eles, entretanto o que mais prejudica é quando romantizamos a situação. É como se quiséssemos gravar num quadro.

Abraço de carinho

Mary