Foi em 1977, época que eu lia cerca de 4 ou 5 livros por semana e amava as construções, as histórias que iam se edificando até o final. Uns venturosos, outros líricos, alguns tristes e poucos venturosos e, então, encontrei a poesia. Uma música silenciosa que tocava na minha mente. Até que um dia, num frio dia, de junho percebi que só a leitura não podia calar minha perda duríssima.
Olhei à minha volta e me dei conta de um pequeno bloco espiral de 10 x 15 papel pautado sobre a mesa onde ficava o toca discos.
A época era dos discos de vinil que cuidávamos como troféus. A novidade em cuidar dos LP's (Long Play) era que podiam ser lavados com detergente suave e esponja de borracha macia (hoje as esponjas são de plástico).
A lavagem mensal e cuidadosa devia poupar o selo do disco de contato com a água e o detergente e depois secar suavemente com um pedaço de flanela.
Depois da flanela, uma passada da escova de veludo "antiestática" para evitar que as felpas do tecido ficassem aderidas ao vinil.
O LP seguro delicadamente com a ponta dos dedos pelas bordas já podia assentar-se sobre o prato giratório da TEAC TN-400BT (braço em S, transmissão por correia, regulagem de velocidade por estroboscópio, contrapeso e agulha de diamante e cápsula magnética Shure SNJ68.
Os discos ficavam ao lado, em pé ordenados alfabeticamente numa caixa de laranjas, pintada de branco. Já eram 3 caixas e começava a faltar lugar.
Há poucos meses antes, ela e eu estávamos numa festa e o Felipe chegara com um disco nas mãos. Sua expressão era exultante, seus olhos brilhavam como os de uma criança que acabava de ganhar sua primeira bicicleta. Via-se de longe que a capa era predominantemente branca e havia uma foto no centro. Nenhum nome se destacava. Aproximamo-nos dele e vimos que a foto no centro da capa eram dois homens se cumprimentando, mas um deles estava em chamas.
Olhamos para o Felipe e ele e nos disse: "Pink Floyd. O título é Wish You Were Here. Acabou de chegar na loja". Mal dormimos aquela noite para esperar o dia seguinte e poder ir à loja e comprar um exemplar daquele disco. É maravilhoso até hoje.
É isso que me dói, vivíamos em conjunto para quase tudo, fazíamos isso sem regras, sem obrigações, mas pelo prazer de estarmos juntos... Porque ela, não eu?
Bem voltemos ao bloco de papel. Havia algo que não era uma angústia, uma opressão. Digamos que fosse uma ânsia de contar o que acontecera, mas contar sem contar, sem narrar literalmente, tipo: "Era uma vez...".
Só que minha ideia de escrever teve que ser espanada por ora, pois eu fora convidado por amigos a um jantar na casa de outra pessoa. Claro que eu declinei, neguei, esperneei. Disse que não, que estava com dor de dente, quero dizer de cabeça... ou de barriga?
Eles me disseram: "Passamos às oito!"
Eu pensei que às oito horas eu iria me esconder, apagar as luzes... eu não queria ir na casa de ninguém, responder perguntas difíceis, chorar na frente de ninguém.
A forma de eu me abstrair para evitar perguntas sobre o passado, quando ia na casa de um amigo, era sentar-me diante da janela de um cômodo e com alguns lápis de densidades diferentes desenhar o que via do lado de fora da janela. Quando ia embora eu dava o desenho ao anfitrião.
Eu pouco ia na casa de amigos, mas nem sempre dava para evitar e quando eu ia isso era minha muleta. Quando as perguntas sobre como ia a vida começavam, eu dizia: "Gente vamos escolher uma janela para eu desenhar". E enquanto eu ia exibindo no papel o que havia do lado de fora eu me escondia do outro lado. Cada desenho chamava-se "Vista da Janela Afora (e tinha um número)".
Contudo, os planos de me esconder do jantar, não tiveram sucesso. Os amigos chegaram e eu fui-me com eles. Depois do jantar, sentados na outra sala para o café, eu imaginava que seria a hora de procurar uma janela interessante para me esconder atrás dos desenhos, todavia, antes que eu o fizesse a anfitriã entregou-me um embrulho de presente.
Dentro dele 3 pequenas telas em branco, 6 tubos de tinta, solvente, uma paleta e 4 pincéis. Ela me disse: “Fique calmo, ninguém vai te fazer nenhuma pergunta difícil. Eu já conhecia teus desenhos e achei que você deveria pintar”. Para desviar o assunto, eu espalhei um pouco de algumas cores direto na tela e passei o pincel espalhando as cores aleatoriamente. Depois de coberta a tela, afastei-a um pouco e meu amigo disse: “Ei, isso é um pássaro... estilizado, mas é um pássaro!”
“Olhe” - disse a anfitriã, “É verdade. Um pássaro surrealista!” Eu já ouvira falar do surrealismo de Salvador Dali, mas não conhecia seus trabalhos. A anfitriã disse: “Espere”. E trouxe um livro ilustrado com dezenas de pinturas de Dali. Eu fiquei deslumbrado e folheei todas as páginas.
Entreguei o livro a ela e também a tela com o pássaro. Disse-lhe: “Sou-lhe grato pelo jantar, pelo kit de pintura e mais ainda por me mostrar Dali”.
Ela disse: “Tudo bem. Fique com o livro também. Quando você dominar os pincéis faça-me este quadro (mostrou-me Metamorfose de Narciso) que eu adoro".
Essa foi a primeira noite, depois de tudo, que não me senti tão angustiado. E vocês me dirão: “Espere! Já estamos perto de mil palavras e você começou falando de um bloco de papel. O que tem ele a ver com isso tudo?”
Bem eu já estava comprometido com o surrealismo até os últimos fios de cabelo, e olhem que na época eram muitos... ainda são, mas eram muitos mais... porém pintar não é uma coisa que acontecia sempre – e ainda hoje é assim – vem um dia e com ele aquela vontade de pintar e a tela branca à minha frente se transforma em uma pintura que nem sei bem como acontece... Ler é sempre bom, contudo aqueles eram dias que só isso – como eu disse – já não bastava e lá estava o bloquinho e eu decidi que ia escrever. Mas não escrever como estou fazendo agora – ora eu estou me repetindo, já disse isto também – assim tipo “Era uma vez...” E esta história é “era uma vez”. Eu queria dizer sem ser óbvio, com algum ritmo, ideias encadeadas, mas não corrida... Poesia! Isso! Eu tinha encontrado o que iria me preencher o vazio dos dias. Entretanto vejam os ingredientes: Pink Floyd, Dicionários, Salvador Dali, Augusto dos Anjos, André Breton, Pedro Oom, um bloco de 10 cm de largura, minha caneta tinteiro... Cada linha um verso e que só podia ter as palavras que coubessem nos 10 cm e do jeito que viessem.
Minha bússola quebrou, estou perdendo o caminho
Não adianta me esconder nem fingir que é diferente
Uma loucura tomou conta de mim e não posso lutar
Meu passado me persegue pra onde quer que eu vá
Aquela ilusão desbotada ainda vem e me atormenta
Eu deveria seguir pelos caminhos escritos na pedra
Mas não tenho a santidade e não tenho nenhum lar
Agora que o inverno chega queria saber recomeçar
Trocar este pântano, pisar um chão de terra sólida
Em mim já não há nenhum desejo que me preencha
Até quando tento me manter à tona neste oceano
Revendo tudo, de fato, eu nunca soube do porquê
As lágrimas de chumbo parecem que não vão secar
As nuvens passam velozes, juntas escondem o céu
Nenhuma estrela, são eternas sombras a me seguir
E esta foi a primeira que escrevi, um quê de tosco, sem grandes enredos. Esse alinhamento não é forçado pela diagramação de parágrafo do computador... Nem sonhávamos com isso em 77. Eu escrevia a ideia e depois ficava trocando as palavras para caber na linha curta do bloco. Também não era a contagem de sílabas usualmente usada na poesia por alguns mais eruditos. Por vezes já ouvi chamarem de prosa poética, mas não. Não é uma prosa poética é um poema - com uma construção peculiar é verdade - mas nasceu assim para caber na folha do bloquete. Porém é um poema com uma soma particular dos ingredientes (e outros) que eu disse: o rock, a dor, outros poetas e mais.
Cada vez que o céu fica escuro e a chuva vem, cada vez que brilha o sol é no papel branco que minha angústia se desfaz ou minha alegria se revela.
É essa poesia, uma senhora, muitas vezes torta, que completa agora 45 anos e pretende seguir o caminho. Viva a poesia.