Há o desespero e há os seus familiares. O irmão desespero, o pai desespero, o tio desespero.
Mas todos eles tocam a mesma canção.
Quem sabe disto é a mulher da vida. Melhor: a prostituta que quando dá onze no relógio da noite aí vem ela, disfarçada de novo, subindo e descendo a rua até que o primeiro carro pare e o condutor lhe faça o gesto combinado. Ninguém sabe ao certo como se faz ou como se fez prostitutas.
Há quem defenda que elas são prostitutas porque se há sapateiros, lenhadores, operários fabris, tem de haver prostitutas.
Mas a Madelena sempre gostou de costura, de aproveitar pontinhas de malha e fazer os seus cascóis e as suas luvas.
Por quê a vida se avaria de repente tal pacemaker no coração de um velho de muitos e muitos anos? Que diferença faz entre a vida e a morte nestes casos em que a solidão usa colete de forças numa mulher? Em dois traços diria que Madelena podia até ser pianista mas acabou na rua prazeirando forasteiros.
Podia até ser sindicalista e lutar contra a fome mas acabou sendo ela a própria fome, o exagero da falta.
Uma paixão de Madalena pode durar até vinte minutos. Dois vezes dez minutos para operar o sofrimento, quatro vezes cinco minutos a tricotar silêncios, vinte minutos de impura solução. Um dia há-de ter alguém que lhe conte aquela história da menina do balão azul a passear na praia.
É ridículo alguém sonhar com promessas, muito mais com borboletas. O sonho havia de ser algo que se possa beijar, amarrar, sem dar contas a ninguém, sem declarar ao carteiro que o nosso apelido aumentou.
As tónicas variam de grito para grito.
O camaleão tem sempre uma cor para seu disfarce. Madalena não tem. Tem um filho para cuidar e para lhe ensinar a tabuada completa que vem no lápis. Mas isto ninguém adivinha. Tem uma lista de compras para riscar mas ainda lhe falta uns bons trocados, tem a roupinha do menino para passar e um creme para lhe pôr no peito.
Madalena não fuma nem gasta dinheiro em tacões altos. Todos os dias são fim do mês. Dizia eu, há o desespero, há a chance perdida mais um calor que se arrefece com o passar das horas. São duas da manhã, o teatro encerrou portas, o espectáculo acabou e os artistas foram beber um copo à Baixa. Parece que a peça foi muito boa.
Contava a história de uma prostituta que se safou e venceu na vida, e depois das voltas e voltas que a vida deu, agora é enfermeira de um hospital e nos intervalos dá papa aos velhinhos.
Um final feliz com certeza, daqueles enredos de arrancar uma mimosidade geral na plateia.
Mas o real além de ter personagens reais não há espaço para aplauso nem ensaio geral antes da estreia.
O mundo está debaixo dos pés, sobre a terra fria e não sobre o estrado do palco com luzes a fingir o negrume.
Os artistas foram os últimos a sair do teatro com o relógio a marcar as duas e pico da manhã. O escuro não se pressente porque todos eles acenderam os seus cigarros, as suas vozes bem colocadas espantam os espíritos desta noite que é mais uma e que será igual hà de amanhã.
E, à Madalena, sempre mal retratada, ainda lhe sobrou uns pequenos insultos.
- quanto é o tombo mor!
O fingimento da dor dói mais do que eu sei lá. Afinal, entre a ficção e a realidade há um grande navio que consegue dar a volta.
A prostituta está com frio e daqui a nada o menino que está em casa sózinho vai acordar para tomar leitinho.
Ela vê quanto tem e quanto ainda lhe falta para de manhã cedo pegar na lista de compras e voltar ao papel de mãe cujas ruínas do seu corpo é bem pior do que qualquer papel de cenário amarrotado.
(Será que vai ser admitida na lojinha de roupa da rua direita?)
Já passam das duas da manhã e com certeza o menino chora e, Madalena olha o dinheiro que apurou mas ainda lhe falta para: arroz, massa, fruta, cereais, ovos, carne fresca, receitas médicas,etc, que para esta noite, num cálculo a frio serão: duas pilas para abater.