hoje devo odiar os poemas da terra
devo repugnar o cristo nu
humilhado em sua coroa de espinhos
hoje devo fechar-me em minha casa
acariciar o cão que não tenho
e chorar uma lágrima qualquer
hoje devo fazer um soneto
contar as sílabas nos dedos
e envelhecer um pouco mais
hoje devo ouvir do jornaleiro
da banca da esquina
as notícias que não queria ouvir
hoje devo ter o rádio ligado
assistir à tv
hoje devo domir enojado
trepar com a minha mulher na certeza que não faremos um filho
hoje devo desejar a mulher do vizinho
escutar os gemidos que saem do outro apartamento
amanhã devo pagar contas no bancos
usar a gravata
escrever no jornal
devo reclamar o salário
olhar meus companheiros e companheiras
mandar flores a alguém
com dinheiro emprestado
e achar que vai tudo normal
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júlio, liturgia dos náufragos, 2003
Júlio Saraiva