
Longe vão os tempos em que as aldeias latejavam de vida. As casas estavam cheias de gente que trabalhava nos campos. Alegres, pois não conheciam outro modo de vida e os seus desejos de ambição resumiam-se às colheitas fartas que assim afastavam o espectro da fome. Mas havia fome, muita fome! Estou a falar de um tempo antigo, do qual ouvia histórias de sardinhas divididas por três, de côdeas de broa untadas com banha a servir de manteiga, de castanhas piladas cozidas quando as batatas já se haviam acabado e de refeições em que a malga era só uma e se colocava no meio da mesa (quando havia mesa e no caso de não haver, de roda do bordo da fogueira, ao borralho), onde a família comia em silêncio depois de dar graças ao divino por mais aquela refeição... o silêncio da refeição não se devia ao não terem que dizer, mas sim ao tempo que perderiam se ocupassem a boca com palavras em vez de mastigar o quinhão que lhes cabia. As batatas eram cozidas com a pele por via de não desperdiçar nada. A broa, muitas das vezes, mesmo dura, era o único conduto que havia.
As crianças pequenas (canalha) eram deixadas na rua todo o santo dia, entregues a elas próprias, enquanto os pais e os irmãos mais velhos cuidavam do renovo e das colheitas nos sítios onde tinham as calhadas e as calhadas lá tão longe!
Certa vez, contava o meu pai, numa tarde em que a fome começava a apertar, convenceu o amigo de brincadeiras a escalar a parede do velho casebre de pedra onde o mesmo morava e se sabia estar pendurado, no alto da trave, o cesto das sardinhas trazidas na véspera, do mercado de Côja. Haveriam de durar quinze dias, não tivessem lá ido eles pesca-las e tratar de as assar nas brasas da fogueira. Tudo porque a fome... A apertar na barriga!
De uma valente tareia, não se safou o amigo à noite... Mas que importou isso se se regalaram os dois e ambos ficaram com a história da aventura vivida, para contar aos filhos e aos netos, se bem que estes últimos tenham tido dificuldades em acreditar, visto que nada lhes falta e não sabem o que significa a palavra "miséria" nem as suas consequências.
Cleo