Na casa da minha avó, para onde costumava ir quando era pequena e adorava, havia, na salita, para além da mesa com as quatro cadeiras cheias de caruncho e enegrecidas pelo fumo da fogueira que enchia a casa toda sempre que os gravetos ainda verdes ou a lenha molhada, havia também uma cómoda com gavetas empenadas que eu me fartava de puxar nos puxadores redondos também de madeira, mas elas a não quererem abrir-se. E, portanto, como a minha força não permitia mais do que uma pequena fresta de um dos lados apesar dos muitos safanões investidos, porque o outro pregado e sem se mover um milímetro! Era pois, por ali que eu espreitava lá para dentro e pescava um ou outro tesouro que ela ali tinha escondido, na escuridão daquele lugar onde coisas esquecidas e difíceis de encontrar... Com a minha pequenita mão lá metida mas sem a poder mover, era com a ponta dos dedos contra a madeira e fazendo com que deslizassem até lhes ver uma ponta e depois a puxar para fora.
Algumas, eram as cartas que o meu pai lhe enviara dez anos antes, de quando trabalhava e morava em Lisboa. Amarelecidas, ainda com selos e carimbos por cima. As letras, desenhadas, não as sabia ler ainda mas a minha avó, analfabeta, já as tinha dado a ler a quem sabia e até pedido à mesma pessoa para lhes responder, cada uma por sua vez, muito antes de as guardar naquele jazigo empenado. Notícias da época a darem conta das preocupações de então.
Uma criança que existia e que não aparecia para ver a avó apesar desta cheia de saudades... Uma ovelha que estaria doente e a não comer nada, E até as oliveiras a prometerem pouco azeite naquele ano... Coisas banais, portanto, talvez até de somenos importância só para encherem o papel. Sei porque as li mais tarde, quando já havia aprendido a juntar as letras com a professora Fernanda na escola da Benfeita.
Cleo
Foto - Parte de uma dessas cartas