um dia na redação da Folha de SPaulo
me pediram
no espaço que eu tinha
que dedicasse uma crônica à Clementina de Jesus
uma empregada doméstica
já velha
cuja voz foi o último lamento da senzala
vergonha para o povo brasileiro e português
pela escravidão que perpetraram
Clementina não cantava
nêga véia nos ninava tranqüilamente
como se nos pegasse a todos pelas mãos
a nos cantar o canto triste de uma África distante
"Não vadeia, Clementina
Fui feita pra vadiar"
o samba estava na sua alma de conga ferida
pela covardia de nós homens brancos
Mãe Kelé foi um sonho
metida em seu vestido branco com as contas
do seu orixá no pescoço
tinha os olhos distantes de quem não viu a pátria
de origem por causa de um maldito porão de um
navio negreiro
eu não escrevi a crônica no dia
nem me lembro sobre o que escrevi
saindo do jornal me pus a chorar
maldita senzala
maldita escravidão
hoje
tanto tempo depois
peço perdão Mãe Kelé
e escrevo:
"Não vadeia, Clementina..."
aliás vadeie por nós aí no céu
ou em Aruanda
o céu do seu povo
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júlio, inédito
Júlio Saraiva