Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia (talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei) na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir por ela acima, para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto do outro lado da rua. Um muro que afinal não o era assim tanto como parecia. Mas, é claro, quando somos pequenos, todos os muros nos parecem altos! O muro era assustador visto que, no cimo arredondado, cacos de vidros espetados, me impediam de o tentar saltar até em pensamento...
Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, com uma varanda a dar para o quintal onde uma macieira bravo-esmolfe gigante a afrontar-lhe as vistas, era tudo o que havia para lá do muro. Duas vezes por ano um casal de meia-idade a chegar num carro de praça. O homem, todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um verdadeiro palito. A mulher, uma doçura de pessoa de quem eu gostava imenso e que nos tricotava sapatos de dormir e gorros de lã com uma bolazita na ponta, que nos agasalhavam os pés e a cabeça quando os rigores do inverno apertavam e nos enregelavam até aos ossos.
Abriam o portão que chiava, também ele, certamente, perro do reumático e falta de uso, e desapareciam por detrás do muro.
No dia seguinte começava a faina de duas ou três semanas no amanho dos quintais. O corte das ervas longas e das silvas, o esbordinhar para que as bordas ajetadinhas e a parecerem bem. E tudo aquilo a culminar com a sementeira das batatas que todos os anos se fazia (e que anos mais tarde: vá, vamos lá que isto é uma pressa!.. E já quase noite e nós ali a esconder a semente nos regos, a despejar-lhe o adubo, a puxar o raspão com a enxada e a cavar-lhe a terra para de cima) e que, com sorte, talvez dessem para o adubo… Sem água e cuidados, não há renovo que vingue. De tal modo que, meses mais tarde umas batatitas miúdas a verem a luz do dia.
Cleo