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Enviado por | Tópico |
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Rogério Beça | Publicado: 18/03/2023 15:55 Atualizado: 25/03/2023 11:09 |
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Re: madalenas e tangerinas
Como fizeste no comentário acima, há uma autodenúncia na tua musa. Mas dum modo suis generis.
O "Traduzir-se" é um espelho do que a poesia pode fazer aos olhos dum poeta como Ferreira Gullar. O brilho. O que o teu poema faz, muito ao estilo de Ferreira Gullar num outro chamado "O cheiro da tangerina" é verdadeiramente a tentativa de traduzir o momento quase divino da inspiração. A exaltação. Ou o espanto. Acho que o fazes dum modo igualmente honesto, e poético. A introdução das "Madalenas", pode ser interpretado como a adição ao fruto que o brasileiro celebra. Ou o nome duma mulher. Se for o bíblico, haveria compêndios e teorias sobre o assunto. Sendo o arrependimento e o retorno de Eva e do pecado, mais umas fontes de exploração. Em todo o caso, o convite à mistura no título é evidente. Tens versos invejáveis. Como é teu hábito bendito. Reparo: "...porque em dias de carne e osso tudo o que seja mais do que brisa quente e água fresca é falso..." Feitos "...de carne o osso..." somos. Como não fizeste a divisão em estrofes, torna-se-me mais árduo destacar alguma, ou localizá-las de forma aceitável, como ter ficado sem entender o que quiseste dizer na comparação do décimo segundo para o décimo terceiro verso. Obrigado, mais uma vez, por este belo poema. Vou deixar o poema de Gullar a seguir, para que não hajam equívocos... lol O cheiro da tangerina Com raras exceções os minerais não têm cheiro quando cristais nos ferem quando azougue nos fogem e nada há em nós que a eles se pareça exceto os nossos ossos os nossos dentes que são no entanto porosos e eles não: os minerais não respiram. E a nada aspiram (ao contrário da trepadeira que subiu até debruçar-se no muro em frente a nossa casa em São Luís para espiar a rua e sorrir na brisa) Rígidos em sua cor os mineirais são apenas extensão e silêncio. Nunca se acenderá neles - em sua massa quase eterna - um cheiro de tangerina. Como esse que vasa agora na sala vindo de uma pequena esfera de sumo e gomos e não se decifra nela inda que a dilacere e me respingue o rosto e me lambuze os dedos feito fêmea. E digo - tangerina e a palavra não diz o homem envolto neste inesperado delírio que vivo agora a domicílio (de camisa branca e chinelos sentado numa poltrona) enquanto a flora inteira sonha à minha volta porque nos vegetais é que mora o delírio. Já os minerais não sonham exceto a água (velha e jovem) que está no fundo do perfume. Mineral ela não tem no entanto forma ou cor. Invertebrada ajusta-se a todo espaço. Clara busca as profundezas da terra e a tudo permeia e dissolve aos sais aos sóis traduz um reino no outro liga a morte e a vida ah sintaxe do real alegre e líquida! Como o poema, a água jamais é encontrada em estado puro e pesa nas flores como pesa em mim (mais que meus documentos e roupas mais que meus cabelos minhas culpas) e adquire em meu corpo esse cheiro de urina como na tangerina adquire seu cheiro de floresta. Esse cheiro que agora me embriaga e me inverte a vida num relance num relâmpago e me arrasta de bruços atropelado pela cotação do dólar. E não obstante se digo - tangerina não digo a sua fresca alvorada que é todo um sistema entranhado nas fibras na seiva em que destila o carbono e a luz da manhã (durante séculos) no ponto do universo onde chove uma linha azul de vida abriu-se em folhas e te gerou tangerina mandarina laranja da China para esta tarde exalares teu cheiro em minha modesta residência) jovem cheiro que nada tem da noite do gás metano ou da carne que apodrece doce, nada do azinhavre da morte que certamente também fascina e nos arrasta à sua festa escura próxima ao coito anal ao minete ao coma alcoólico coisas de bicho não de plantas (onde a morte não fede) coisas de homem que mente tortura ou se joga do oitavo andar não de plantas e frutas não dessa fruta que dilacero e que solta na sala (no século) seu cheiro seu grito sua notícia matinal. Ferreira Gullar. |
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Abissal | Publicado: 19/03/2023 02:45 Atualizado: 19/03/2023 02:45 |
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Re: madalenas e tangerinas
Sempre a aprender com o Benjamin.
Que bela construção,como sempre. Abraço, amigo. |
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HorrorisCausa | Publicado: 21/03/2023 11:59 Atualizado: 21/03/2023 11:59 |
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Re: madalenas e tangerinas
olá benjamim
" nunca vou saber o que é dormir cedo..." perdoa a minha ousadia de acrescentar: " nunca vou saber o que é acordar tarde." (rsrsrs) mas, sei que estou perante um escrito ou uma escrita que respira, transpira pelos poros inspiração e contagia. atenciosamente HC |
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atizviegas68 | Publicado: 23/03/2023 08:35 Atualizado: 23/03/2023 09:12 |
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Re: madalenas e tangerinas/Benjamim
A fruta, crédito do apreciador de palato(s) e a madalena (nome próprio, bolo o figura do éden), ambas inspirações méleas da madrugada.
"equívoco próprio de quem se deixa levar pelo pecado insciente de um odor ou de um verso segredos idênticos" e "essa dança de roda à volta do tempo em que perco o fôlego e regresso de súbito à inspiração". A juventude com toda a sua glória dos sentidos para sentir. A fruta, a meninice, a inspiração, não adormecem cedo! Sem o final áspero da fruta pútrida, mas bem mais parece com irreverência do corpo e da carne cobiçosa. “Depois do almoço/ Quando arrastamos a cadeira um pouco para trás/ Uma sonolência morna entrelaçada de luz entra pelas janelas/ Ludibria as cortinas e difusa poisa no vinho. É nessa altura que dizemos: vou comer este dióspiro antes que apodreça.” Coletânea de poesia, de Daniel Maia Pinto-Rodrigues (o da nêspera é de Mário Henrique Leiria). Acrescentaria que no "A nêspera" de Mário Henrique Leiria: " olha uma nêspera e zás comeu-a". Comem-se madalenas e tangerinas sem contar o tempo, nem o seu travo final. Obrigada. Sempre preciosa a sua presença e escrita ( preciosa pela presença rara, palavras de alguém desta "casa"), que reitero. Pecarei escutar o poema pelo "olhal"!! Ler e reler, é delciosamente doce. Um abraço |
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Sergius Dizioli | Publicado: 23/03/2023 11:59 Atualizado: 23/03/2023 11:59 |
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Re: madalenas e tangerinas
Não, não seria o Benjamin se não nos trouxesse uma nova pérola entre as tantas que já nos trouxe. Nesta, desde o início, leio e me vejo. Ora com minha mulher a me chamar "vem dormir" e eu respondendo "ainda é cedo" e continuo a clicar o teclado tic-tec-tec-tunc. "Veeem dormiiir" e eu subo, mas não durmo. Nunca cedo. Mas antes pela escrita ou levado pelo (nem tão) pecado. Sim o mesmo segredo me mantém acordado até as tantas.
Porém olvidaste, quiçá pela modéstia, incluir também a verdade de teu escrito - ao lado da brisa e da água - tão essencial quanto um ou outro, e que espero frutifique o ano todo como fazem as tangerinas. Saudações. |
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MarySSantos | Publicado: 24/03/2023 13:55 Atualizado: 24/03/2023 13:55 |
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Re: madalenas e tangerinas
porque em dias de carne e osso
tudo o que seja mais do que brisa quente e água fresca é falso Mais um favorito, sim... Favorito quase tudo que crias, mas tens uns versículos que quase sempre me deixam pêndulo! Maria |
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