Tenho para mim que uma das coisas mais importantes que me aconteceram na vida foi ter tido a fortuna de poder partilhar com a minha avó momentos irrepetíveis, recheados de pequenos nadas e cobertos de uma fina camada de ternura, que ainda hoje lhe sinto o doce do paladar quando migalhas a roçarem o palato da alma...
Aquela figura alegre, que cantava para enxotar a solidão e rezava sempre um terço de fé à noite. Quando ainda andava direita, empoleirada nas tamancas de pau, dois palmos de saia abaixo do joelho com avental por cima e blusa que ela apertava num clic de molas entre polegares. Na cabeça um lenço atado atrás a proteger o carrapito que segurava com ganchos de arame e uma travessa enterrada no cabelo. Por vezes penteava-se ao sol comigo ao pé de si a pedir-lhe que me contasse histórias. Outras vezes a dar uns pontos nalguma coisita descosida ou algum remendo novo que se precisasse e pedia-me que lhe enfiasse a agulha porque os seus olhos já não deixavam e eu toda contente a molhar a ponta da linha de saliva e a encostar a agulha ao pé dos olhos e aquilo afinal a ser tão fácil de enfiar. Subíamos para as lajes do telhado do pátio e ali ficávamos até o sol fugir.
Se de inverno, o lenço atado ao queixo e um xaile ou uma capucha a completar a indumentária de cor escura, penso que por causa do luto.
Uma lasca de memória a trazer-me o instante de um dia de primavera ensolarado e ela a conversar com alguém que não me recordo quem, com a mão direita a servir de pala em virtude do brilho da luz a fulminar-lhe o azul do fundo do mar dos olhos que se lhe arrasavam de água salgada. E nisto ela apalpar o bolso do avental e a desdobrar o lenço para enxugar os olhos maculados.
Coisas destas, assim importantes, a sobreporem-se a todas as outras e a fazerem a diferença toda entre o que é ou não importante na nossa vida a partir de uma certa idade. Porque, tenho para mim que aquela criança que ali está ao pé da avó no telhado de lajes ao sol, ainda é bem capaz de a seguir ir com ela até ao bordo da fogueira, comer o caldo das couves a aquecer os pés e a alma de agora.
Cleo