Num dia qualquer e em qualquer lugar, aconteceu o seguinte.
Entre deixar a última fatia e comê-la há o prato. Em qual dos dois momentos a censura agirá com maior fervor?
Um prato de bolo vazio e sujo é-me de gigante ignomínia.
Descaradamente, o derradeiro consumidor desrespeitou uma das regras mais básicas da partilha. É ele que deveria lavar o prato e o deixar no escorredor a secar. Se essa nobre tarefa ficar por cumprir, levado, por exemplo, por crer que todos os restantes consumidores em nada lhe são superiores, quem espera ele que o faça?
O pasteleiro, certamente indignado, ficará na dúvida se fará outros. Ou come-lo-à sozinho.
Contudo, o descarado teve a hombridade de fazê-lo às claras, exibindo, ao menos uma incerta dose de coragem, ou honestidade.
A fatia que fica no prato é outro assunto. O comedor da penúltima fatia não pode lavar um prato por vazar. Estragar comida, nos tempos que correm, é ofensa grave, pecado à moda antiga.
A fatia da cerimónia (como eu gosto de chamar) fica por tocar. Isto, porque os partilhantes acham que o dever da higienização é sempre doutro, e tarefa menor.
Apressam-se a fatiar o bolo equitativamente e desatam a degustá-lo. Bendita pasteleira.
Há uma premeditação horrenda na última porção, um fingir que se cumpriu com o senso comum, um procrastinar odioso da última fatia até quase ao bolor. Uma má-fé sorridente, fingida e prosaica.
Existe sempre um guloso em cada história que pensa se deverá, ou não, lavar o prato e depois toma uma decisão, qual deles és tu?
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.