De vez em quando, pequenos retalhos de uma vida passada, a aflorarem-me ao pensamento. E volto a ter cinco ou seis anos e uma consulta com o Dr. Rasteiro, o oftalmologista de Coimbra, que, no seu frio consultório do hospital de Arganil, me receitou pela primeira vez uns óculos de oito diopetrias, que me faziam ver as coisas nítidas ao meu olhar míope. Daí para diante, nunca mais foi preciso ir com a cara ao chão para ver qualquer coisa minúscula a apontarem com o dedo - ali, ali... não vês?!... está mesmo à tua frente! - e aquilo impossível de ver dali. Uma vez por ano, a garantir o crescente nas diopetrias e o lugar na carteira da frente da escola primária (e das outras), mesmo em frente da professora. E eu, que dava tudo para estar no da carteira lá do fundo. Mas esses guardados para os "burros"!... Antes de tudo isto, ainda era preciso lá chegar. Ao consultório do doutor. De modo que, e para poupar o dinheiro da carreira, que ainda para mais era preciso ir apanhar à Benfeita, daquela vez resolveu-se ir a pé pela estrada da serra. Levantar da cama ainda de noite nem foi o pior. O pior, foi mesmo a lonjura do caminho! Pelo carreiro do Covão acima, como quem ía para a Desprezos, até à Lomba. Depois, bem... depois, já era bom caminho. A estrada de terra batida a levar-nos na poeira por aqueles pinhais adiante. E eu, de meias brancas e sandálias, tudo numa lástima de pó...! Passando o Alqueve, depois Folques, e tudo já em alcatrão. O meu pai, de vez em quando a parar e a tirar o relógio de bolso para consultar as horas. Talvez uns 20 quilómetros, nada que não se pudesse fazer, até porque, no regresso, havia a promessa da carreira que abalava de lá às quatro e meia, portanto, ainda bastante tempo de sobra para o meu pai se aviar antes de algumas ferragens que lhe faziam falta na oficina. A loja das ferragens era ali mesmo por detrás do café "Argus" de agora, não me lembro se naquele tempo também. Do que me lembro bem, era da rua empedrada de penedos reboludos e da loja mesmo ao meio, onde nasciam duas ruas. De maneira que, uma porrada de tempo ali, entre dobradiças, pregos e parafusos, antes de irmos comer uma bucha de pão e queijo que a minha mãe nos tinha mandado para compôr o estômago, à taberna escura que havia ali para as bandas da feira e onde estavam os do costume, a beberem os copos do costume. Um sumol de ananás para mim, um copito de vinho para o meu pai para ajudar a empurrar e a trouxa da bucha na mesa sebenta, que ainda tivemos de repartir pelos do costume, por causa da boa educação que fez o meu pai perguntar: - São servidos? E o queijito e a broa cozida de véspera, a luzir nos olhos dos demais. E tudo isto agora reduzido a tempo. Tempo e memórias.
Cleo