Era fim do dia e eu esperava por ela, conforme combinado em nossas conversas. Queríamos esconder dos nossos sonhos a verdadeira intenção de nos encontrarmos todos os dias, e queríamos descobrir por que essa falha nos permitia nos amarmos apenas em sonho. Quando o que mais queríamos era viver tudo isso na realidade, sentir o toque um do outro e poder de fato experimentar todo o amor que nossos corpos guardavam. Durante todas as nossas conversas, usamos códigos para não deixar clara nossa linguagem desafiadora para com nossas mentes. Se elas eram parte de nós, perguntava-me por que queriam nos manter separados fisicamente. Talvez a resposta mais simples seja que ela precisava que fosse assim para que nenhum de nós viesse a sofrer no futuro. Diante dessa situação inusitada, eu procurei manter a calma e seguir com minha rotina diária, procurando esquecer de fato aquele amor que durante meses vinha confundindo minha cabeça em sonhos. Mas no fundo, ainda me perguntava o porquê de nunca mais encontrar aquele amor. Após horas de reflexão, decidi ligar para uma amiga que não via há muito tempo. Ela atendeu e combinamos de sair para conversar sobre a vida e o tempo que ficamos longe. O local combinado foi o Restaurante de D. João, um grande amigo nosso que levava a arte da culinária portuguesa de sua família para todos na Cidade Alegre.
Enfim, a noite chegou e fui encontrar uma amiga no restaurante, mas ela não pôde comparecer devido a um problema no consultório. Decidi entrar e jantar sozinho, mas de repente uma moça entrou no saguão e pediu uma mesa para um dos garçons. O gerente respondeu que não havia mais mesas disponíveis e a moça ficou chateada e um pouco furiosa. Então, o garçom disse que havia uma mesa reservada para duas pessoas, mas que uma delas não havia comparecido e se eu não me importasse, poderia dividir a mesa com a moça. Eu estava esperançoso e sorridente, mas o garçom levou a moça para uma mesa com outra senhora e elas começaram a conversar animadamente. Fiquei chateado por o garçom não ter me oferecido a companhia da moça. Depois de algum tempo, decidi ir embora e caminhar até minha casa. Ao sair do restaurante, vi que a mesma moça estava parada perto de um carro, furiosa. Aproximei-me e perguntei se eu poderia ajudar ou chamar alguém para ajudá-la. Ela me olhou com indignação e disse: "O senhor acha que uma mulher precisa da ajuda de um homem para resolver seus problemas? O senhor tem ideia do que eu passei hoje?". Eu me desculpei e disse que não queria deixá-la com raiva.
Eu fiquei furioso com aquele ataque desnecessário à minha pessoa, que só queria ajudar. Respondi: "Senhorita, peço que se recomponha e fique mais calma. Não vê que as pessoas estão nos olhando e extremamente envergonhadas com tamanha falta de etiqueta por parte da senhorita? E antes que faça qualquer acusação injusta, gostaria de deixar claro que minha intenção era as melhores possíveis. Mas como vejo que a senhorita está em um acesso de fúria e não quer ajuda, irei me retirar para que possa continuar seus desbravados chutes no carro."
Ela, em impulso, segurou meu braço antes que pudesse sair de perto do carro e falou em um tom mais calmo e cordial: "Senhor, não queria passar essa impressão de louca e sem etiqueta. Peço sinceras desculpas e gostaria de pedir que, se o senhor ainda sentir alguma empatia por mim, faça o favor de me ajudar com o carro, pois não entendo nada e estou bastante cansada para aguardar um trem a essas horas. Se quiser fazer isso, gostaria de explicar que não sou assim, apenas fiquei furiosa pois nada nesse dia saiu como o planejado."
Ouvindo aquelas palavras, senti que não seria bem visto da minha parte não ajudar a jovem.
_ Tudo bem, respondi sem muito entusiasmo. "Gostaria de saber qual o problema com seu carro", ela falou que o carro estava desligando sozinho e que não conseguia dar partida. Eu verifiquei e percebi que restava apenas um pouco de gasolina e por isso o carro estava desligando. Falei com toda calma que o problema era simples e fácil de resolver, mas só no dia seguinte. Ela me olhou meio incrédula com a situação e começou a falar: _ senhor, para onde eu irei? Não tenho parentes na cidade e muito menos conhecidos. Estava apenas de passagem e decidi comer alguma coisa antes de continuar minha viagem. Oh céus, como ficarei em um lugar desconhecido e sem alguém.
_ Senhorita, por favor, não chore. Eu sei que essa não é a melhor das situações, mas pense comigo: seu carro poderia ficar sem gasolina no meio da estrada, o que seria muito pior para você. Caso a senhorita não veja problema, podemos caminhar e eu vou apresentar um pouco da cidade para deixá-la um pouco mais calma. Enquanto isso, posso pedir ao meu amigo que consiga uma gasolina para seu carro com o chefe do posto.
Ela ficou um pouco desconfiada e não demonstrou muito interesse em meu convite, então decidi me apresentar para esclarecer qualquer dúvida que ela tenha a meu respeito.
- Sei que não sou uma pessoa conhecida da senhora, mas meu nome é Amor, eu sou professor da academia Asgard e dou aula de Física, uma das minhas maiores paixões depois dos livros. Também trabalho na biblioteca pública da cidade e sou irmão do prefeito. Acho que agora a senhorita pode ficar um pouco mais calma perante minha presença.
_ Senhor, não me entenda mal, mas suas credenciais são impecáveis, mas não tão boas quanto o tempo que levamos para saber se alguém é de nossa inteira confiança. Acho melhor eu ficar por aqui mesmo e aguardar algum policial.
-Senhorita, estamos às vésperas de um feriado muito especial para a cidade e todos os policiais estão na academia cuidando dos afazeres da festa.
- Mas será possível que não haja um policial disponível nessa cidade? Exclamou ela com bastante fúria.
- Olha, realmente estou tentando fazer o melhor que posso, mas se a senhorita acha melhor ficar e esperar por alguém, desejo boa sorte!
- Não, por favor! Fique! Eu preciso de uma companhia e a do senhor me parece a melhor nessa cidade.
Decidimos, por fim, caminhar um pouco e conversar sobre o que ela estava fazendo durante a viagem. Ela contou que era escritora e estava para ir a um evento na cidade de Fortes, que ficava a duas noites de viagem de Alegres. Fiquei surpreso, pois não imaginava ela ser escritora, apesar de seus dedos manchados de tinta de caneta revelarem um pouco de sua personalidade. Passamos a noite conversando e rindo de alguns desastres que costumam acontecer nesses eventos. Contei a ela um pouco sobre minha paixão pela arte, música e livros. Ela ficou encantada enquanto eu falava. Foram as melhores horas da minha vida, mas passaram tão rápido que, quando olhamos para o relógio, o dia estava para raiar. A convidei para um café no mesmo restaurante e ela foi de bom grado.
Depois do café e com o problema do carro solucionado, fiquei ansioso para pedir o número dela, mas antes que eu o fizesse, ela esticou a mão e apertou a minha em um gesto de agradecimento. Disse em poucas palavras que aquelas foram as melhores conversas em anos com alguém real, e depois foi embora. Foi quando corri para alcançar seu carro, que o relógio disparou a tocar, me acordando daquele que, sem dúvidas, foi o sonho mais real que já tive em anos.
Até hoje ainda sinto falta daquela conversa despretensiosa e agitada com uma escritora. Eu ainda acordo no meio da noite e percebo que tudo não passou de apenas uma imaginação. A moça do restaurante nunca teve problemas com o carro e muito menos ficou na cidade. A moça com quem eu conversei nunca foi real também, apenas minha cabeça conseguiu criar uma noite com ela para conversar. Às vezes, os sonhos são tão reais que parecem querer sair de nossas cabeças e brincar com nossos sentimentos.