Se eu fosse um fantoche seria de uma só cor: negra: escuridão aflita: compartimento de casa desabitada: boneca de trapos no rodapé.
A noite toca-me como um vinho bom que acaba de ser produzido. Tenho ideias que dariam para inventar o amor em vez da enxada.
Tenho os hemisférios da cabeça de costas voltadas e sigo rumos contrários: uma gambiarra nos sentidos.
Tenho dinamite numa parte incerta do corpo que daria para destruir por inteira a muralha da china. Tenho um espírito feito de porcelana que foi comprado na revenda. Tenho um sinal na testa que é a prova que o Tudo existe para além da fronte.
Se eu fosse um fantoche havia de saber inglês, russo ou a língua universal dos povos: o amor.
O relógio é o pior inimigo dos amantes que improvisam a ceia no matagal, os inquilinos da rua vêem-se forçados a subir as árvores para alcançar as maçãs: que são o centro das explicações da nossa descida à Terra.
Desculpem que eu acelere este texto de pura vaidade, tenho um encontro para as nove e ainda me falta ler Mário de Sá Carneiro para endoidecer. Preciso de estar só com as palavras, com os versos desatinados para conquistar uma sevilhana que quer aprender a dança do ventre.
Eu disse-lhe que não sabia dançar, ela respondeu “ não faz mal, o segredo está em deixar ir”. Deixar ir! Por certo ela terá a sua razão, que é sempre o lado por onde se começa a comer o pão. Invisto na sorte e olhem o meu azar! Corro o risco de não ter compromissos com ninguém.
A sevilhana não há-de quer ouvir falar sobre afluentes de rios ou paragens de comboios.
A notícia de que vou vencer há-de ser impressa durante a noite aquando o padeiro levar o pão ao forno. Assim será tômbola do futuro: declarações de amor carregadas de erros.
Ao virar da esquina, precisamente ao virar da esquina, fez-se meio-dia e mentia se dissesse que o sol estava a meu favor - já os cães são uns atrevidos e urinam em portas catalogadas de renascentistas-, alguém me dirige um olhar.
Não era um olhar qualquer, este trazia um aura encorpada, um laço de puxar. Senti-me - como quando fiz a primeira comunhão – hipnotisado, a ser conduzido para o outro lado da rua, sem olhar para ambos os lados a ver se podia passar.
Do outro lado, que agora era o meu lado, uma sombra reluzente fez-me um convite, daqueles convites que aparecem uma vez na vida. Que era: trocar a minha velha sombra por esta nova sombra reluzente. A tentação era muito, digo, uma iluminação destas já eu precisava há muito. Aceitei, sem ler as contrapartidas. Um contrato assinado pelas almas.
Claro que se eu contasse isto aos amigos da empresa, eles rir-se-iam na minha cara. Mantive-me calado. A gozar de uma luz que nem transe imita. Céus brilhantes na minha cabeça, carnavais, sambódromos nas minhas veias.
Tudo era intenso e original. O paraíso aqui, comigo, dentro desta rude ossada. Algumas pessoas repararam na minha luz natural, no meu sorriso de quem nada teme e, quiseram um pouco dessa luz, um naco dessa magia que não sai das mangas de alpaca. Não consegui evitar sarilhos e, fui arrastado para um beco escuro, como todos os becos que conheço.
Encostaram-me à parede onde outros também se encostaram um dia. Puxaram-me os braços quase ao ponto de os separar do meu corpo. Exigiram que eu lhes fornecesse um pouco que fosse dessa minha luz concebida. Ao fim de escassos minutos, escorria por poros e poros uma luz parada, viscosa, agora avermelhada, sem poder de confissão, sangue morto.
A sombra zarpou e ficou apenas o corpo, o meu corpo, aberto em naufrágio. Após o sucedido, vieram homens combater essa aflição, por milagre respirei um ar que por certo veio da montanha, de quem vem à janela de um cinquagésimo andar. Os meus olhos eram como velhas amarradas ao terço.
As minhas mãos: duas palermas, ali, a olhar, sem fazerem nada. Os homens levaram-me para um lugar onde tudo é branco. Todas as conclusões vão dar ao branco. Todas as memórias são brancas. Todos os destinos embarcam no mesmo cais: que é branco como o topo do céu. Todas as vestes são brancas. Todos os homens e mulheres têm asas brancas. Todas as sementes germinam brancura.
Se eu fosse um fantoche seria de uma só cor: negra: escuridão aflita: compartimento de casa desabitada: boneca de trapos no rodapé. Como sou homem, sou um branco que aguarda o alvará assinado pelo céu, mas que já vai a caminho, acabado de dobrar a Usa Maior, a passar o sinal amarelo de uma estrela.
A sevilhana diz que me adora, que o segredo está em deixar-se ir. Quando chegar ao céu vou falar com Deus, dizer-Lhe das boas. Ele terá muito que se explicar em relação a muitos segredos, Terá de me dizer por que é que há sombras e sombras. De resto, agradeço à ganância e aos homens maus.