Poemas : 

“são ratos, meu senhor …”

 
Tags:  fome    misÉria    direitos humanos    desemprego  
 
e se subitamente do meu regaço
aberto
dilatado
tombassem a teus pés no chão da tua verdade
pétalas, rosas delicadas, cristalinas, numa mansidão de gestos
num milagre de mulher a parir flores?

rosas tenras, perfumadas, libertas em profusão de aromas e cor…
pintarias um quadro de mim?!

talvez sim!

e, se de repente
tragicamente de cada uma delas
em cada uma delas, se esculpissem braços e pernas,
bocas abertas em epopeias de brados e gritos
se hasteassem corpos e estandartes
e vozes de mensagens maiores
no proclamar de direitos inolvidáveis
de verdades proscritas
de mentiras engendradas para enganar a adversidade da vida?
o que dirias? diz!!!

talvez um nada, ficarias mudo,
ou
ignorante de ti, me olhasses de forma esquiva…

e se eu te mostrasse agora
que cada uma delas (as minhas palavras) tem dentes e limalhas?

que as palavras com que te falo
são retalhos
varejos em tempestade de milhões de outras vidas?

rebobina de novo o filme…
recomeça…
atenta de novo e enxerga. olha por dentro de ti,
olha aqui a teu lado e logo ali:

- do meu ventre e a teus pés, tombam guinchos aflitos
de gentes de carnes anavalhadas a cada despedida
sem contínuo ou futura jornada

não rosas … mas “ratos”

um batalhão de desempregados
“ratos” por ti, por mim, condenados a mendigar a valeta
a viver dentro do lixo
nas fímbrias pendulares da nossa consistência
e ai, buscar o sustento p’ra a sua própria vida …

e que, nesta hora inquieta, do meu colo e a teus pés
eu, a insana poeta, a “poeta do amor”,
os liberto e te digo:

“são ratos, meu senhor …”

são “ratos” aqueles que transporto no lado esquerdo do peito
e aninho no regaço
e, do meu jeito, a teus olhos aqui liberto
se os transformo em rosas do teu e meu clamor!

“são ratos, meu senhor …”




MT.ATENÇÃO:CÓPIAS TOTAIS OU PARCIAIS EM BLOGS OU AFINS SÓ C/AUTORIZAÇÃO EXPRESSA

 
Autor
Mel de Carvalho
 
Texto
Data
Leituras
2673
Favoritos
2
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
25 pontos
9
0
2
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Valdevinoxis
Publicado: 03/05/2008 18:00  Atualizado: 03/05/2008 18:00
Administrador
Usuário desde: 27/10/2006
Localidade: Aguiar, Viana do Alentejo
Mensagens: 2118
 Re: “são ratos, meu senhor …”
E se te disser que a tua escrita é como o vinho do Porto e tu, escritora, como a vinha que o dá?
Cara Mel, este texto enquadra-se num estilo teu sem se desviar um milímetro. Parece-me que é de um brilhantismo ímpar, não só pela forma característica (que muito me agrada) da tua escrita mas também porque o consegues torcer até lhe pores a cara nas costas. O texto começa num registo doce e belo e vai-se virando até soar a raiva. Termina num jeito doído e de compaixão.

Para mim, acabei de ler a Mel de Carvalho no seu melhor.

Valdevinoxis


Enviado por Tópico
Liliana Jardim
Publicado: 03/05/2008 18:46  Atualizado: 03/05/2008 18:46
Usuário desde: 08/10/2007
Localidade: Caniço-Madeira
Mensagens: 4420
 Re: “são ratos, meu senhor …”
Aí está um desenho social actual, damos vida aos nossos filhos nesta sociedade estranha e louca, sem sabermos como há-de ser o seu amanhâ...

Como sempre divinal, poetisa
Beijinhos amiga
Tudo de bom para ti.


Enviado por Tópico
juvepp
Publicado: 03/05/2008 19:09  Atualizado: 03/05/2008 19:14
Colaborador
Usuário desde: 13/04/2007
Localidade: Machico - Madeira
Mensagens: 547
 Re: “são ratos, meu senhor …”
Olá Mel,
Rosas ainda que com espinhos deveria ser a vida de todo o ser humano mas a vida que aqui descreves, para muitos, está longe de serem rosas. Muitos são aqueles que pelas circunstâncias da vida e do País viram a sua dignidades de ser humano esvair-se por um cano abaixo
Dramática é a vida de muitos e a metafóra dos "ratos" não podia ser mais eloquente. Gostei muito. Poderás não fazer muito mas o facto de os transportares "no lado esquerdo do peito" mostra o quanto te mostras solidária com tais vidas. A realidade de muitos é cruel e tu soubeste captá-la muito bem. Parábens

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 03/05/2008 19:45  Atualizado: 03/05/2008 19:45
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: “são ratos, meu senhor …”
Concordo com Valdevinoxis; entendo esses ratos como roedores de consciências. Que bom ler-te. Beijinho Mel

Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 03/05/2008 21:41  Atualizado: 03/05/2008 21:41
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
Localidade: Penafiel
Mensagens: 1801
 Re: “são ratos, meu senhor …”
A Mel é muito criativa. Não escreve em cima do joelho. Não é redutora. Não é uma intelectual que julga ter descoberto uma linha de montagem de literatura "standard". A Mel vê através do coração. Quando escreve pede desculpa às teorias por se ausentar e vai concentrar-se a sentir como quem escuta música sem fazer favor. Este poema é brilhante, pelo estilo a que nos habituou e, para mim, pela subversão que opera da lenda da Rainha Santa Isabel. Na minha ingenuidade de criança, sempre achei essa lenda do mais belo que há! Agora, a Mel propõe um milagre diferente...Pois bem, interrogo-me se a lenda não teria um sentido mais interessante se o milagre fosse dos ratos em vez das rosas...
A minha admiração pela Mel.

Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 04/05/2008 11:28  Atualizado: 04/05/2008 11:28
Membro de honra
Usuário desde: 24/12/2006
Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3414
 Re: “são ratos, meu senhor …” p/ Mel de Carvalho
Tivesse eu talento para tal e garanto-te... pintaria o quadro com todos os odores, as formas vivas que enfeitavam esse teu regaço e todos os males existentes para que aí ficassem presos, à mostra de toda a gente e para que ninguém se esquecesse das misérias que transformam em falsas flores.

Excelente

Beijo

Enviado por Tópico
Mel de Carvalho
Publicado: 06/05/2008 21:07  Atualizado: 06/05/2008 21:07
Colaborador
Usuário desde: 03/03/2007
Localidade: Lisboa/Peniche
Mensagens: 1562
 Re: “são ratos, meu senhor …” p/ tds os amigos
Juevelina, Roque, Carlos Ricardo, Alemtagus,

a cada um o meu imenso agradecimento. Este poema resultou de um momento de revolta, de tristeza. A pobreza instalada no mundo não me é indiferente. Não pode ser, como sei que a vós também não é.

A pobreza "disfarçada" já está ao virar da esquina de todos nós. Talvez seja necessário mais que um conjunto de palavras. Talvez seja necessário outro tipo de acções. Há muito que venho a falar de uma corrente de solidariedade entre os "poetas" como nós: publicar conjuntamente e doar direitos...
Sou, como já disse, demasiado fraca para motor de qualquer coisa, mas somos tantos, não é???
Pensem de novo, amigos, pensem com carinho. Urge acontecer!

Abraço da Mel