Poemas : 

tríptico da virgem – painel central

 
em memória de paula rego

às vezes ainda regressa
com o carinho cru
da parturiente cheia
de mãos vazias
acomodando brasas
sobre os mamilos

porque se esquece
de cor
dos anjos que seguraram
as pernas abertas
à espera da sarça sempre
ardente da mais estúpida
verdade errando
pelos homens de onde se elevam
as primeiras estrelas de um
brilho puerilmente
negro

trago-a sempre comigo
de um gole só
responde-me com a forca
delicada dos braços
e trinca-me o crânio
do tamanho da sua boca
pois apenas nos é dada a conhecer
a ternura dos abandonados

diz que nunca

mas há sempre um dia
em que nos cruzamos
com aquilo que somos
com os berços mijados
as saias arregaçadas
a sinfonia dos acamados

houve tempos em que parecia
o espectro da montanha
o gigante de mim mesma
tão longe como um círculo de cores
sem falsos silêncios
antes um segredo
lambendo-me as orelhas

hoje tenho de ser eu
a limpar-lhe a saliva
esquivando-me às dentadas
a colocar-lhe a mão
dentro das cuecas
a sussurrar o nome
de cada uma das feras
com quem se deitava
atrás da tela

sempre foste das aves
e decerto sabes
uma ou duas coisas sobre vertigens
e quedas
por isso diz-me se te lembrares
qual o preço
certo desta montra final

 
Autor
Benjamin Pó
 
Texto
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/06/2022 09:10  Atualizado: 17/06/2022 09:16
 Re: tríptico da virgem – painel central
.




Costumo comentar quando algo mexe por dentro e ainda por um tempo continua incomodando.
Seu poema pode causar várias reações, as mais íntimas que não pode ser desnuda, seria o caso de pensar em censura, mas os arrepios só vai vir daquele que entende? Poderia pensar em proteger a inocência do menino, mas que é isso dentro de mim que grita tantas bobagens, se todos nascem com uma bagagem já trazem na mala a curiosidade, eu quero proteger o menino que vai descobrir que a curiosidade é uma cobra!

No final eu tenho medo é da proteção e não dá curiosidade, Abraços!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/06/2022 10:53  Atualizado: 17/06/2022 10:53
 Re: tríptico da virgem – painel central
Um poema intenso e belo escrito com a maior maestria poética


Enviado por Tópico
Transversal
Publicado: 18/06/2022 00:23  Atualizado: 18/06/2022 00:23
Membro de honra
Usuário desde: 02/01/2011
Localidade: Lisboa (a bombordo do Rio Tejo)
Mensagens: 3755
 Re: tríptico da virgem – painel central
Há textos assim…
Remetem para algo estranho aos poetas … O Acto Criador (não a Criação), o momento, aquele momento

“às vezes ainda regressa
com o carinho cru
da parturiente cheia
de mãos vazias” e aqui sem dúvida Human Cargo de Paula Rego

mas…

saio da pintura dela e vou mais longe (ou apenas tento)
“mas há sempre um dia
em que nos cruzamos
com aquilo que somos” e na dúvida entre A Partida de Xadrez e Le theatre Pirandello, fico pela A Biblioteca em Fogo todos de Maria Helena Vieira da Silva

“de cada uma das feras
com quem se deitava
atrás das telas” e fixo-me em O Fado de José Malhoa

“sempre foste das aves
e decerto sabes
uma ou duas coisas sobre vertigens
ou quedas” e aqui entra fulgurante O Almoço do trolha de Julio Pomar

“houve tempos em que parecia
o espectro da montanha
o gigante de mim mesma (o)
tão longe …” com Portrait de Fernando Pessoa de José Almada Negreiros,

e regresso ao início deste enorme comentário desculpando-me
“hoje tenho de ser eu” e claro Baying de Paula Rego, afinal em memória.

Esta a grande lição da poesia, faz-nos ir ir, e por vezes a dificuldade em regressar é tremenda.
Parabéns benjamin
Muito obrigado
abraço
(afinal valeu, e muito, a pena passar por aqui esta madrugada)