Prosas Poéticas : 

Não existe vento a separar o amor

 
Coloca vagorosamente o ouvido no búzio. Um sinal estranho parece vir dentro dele. Um eco de outros ecos. As ondas do Tejo sendo abaladas por um adamastor. Gritos de homens num décimo quinto andar em chamas. Tira o ouvido do búzio: os mesmos sons sofridos, a mesma malha que é usada para acender a lareira: o crepitar da maresia.

Aperta o búzio nas mãos, quase ao ponto de o esmagar e, antes que aconteça, lança-o para a vertigem do mar. Ficou com a sensação que ignorara uma grande descoberta: a vida do búzio: a filosofia da pedra azul. Caminhou na direcção contrária do mar e entrou numa taberna onde as guitarras soam mais do que os marinheiros quando a rede vem carregada. Sentou-se, junto a uma imitação rasca de Pollosk, fitando olhos a uma negra que mexia o corpo numa rumba secreta.

Pediu meio brandy com duas pedras de gelo, que é o seu costume quando a nostalgia lhe assanha e, deixou-se ser levado por uma camada de incenso fosforescente que vinha do balcão. É esquisito avaliar estados de alma, pensar no que seria se tivesse guardado o búzio no bolso e em casa meditar sobre ele. Talhá-lo até intimidade. As ideias são vagas de sementes que com a gramagem certa de suor e terra já terá os seus frutos a espreitar. Através do ridiculo também se compõe uma canção, uma estória que se julga não existir.

Aqui, neste nocturno silêncio, tem as mãos tacteando sobre o tampo da mesa, as pessoas que respiram consigo este friso aberto de inverno são suspeitas e Ele não é fã de enredos macabros, acredite. As sensações abrem-se e fecham-se como um acordeão, embora seja sempre obrigatório um alguém para iniciar a dança do fole. Tivesse este homem todos os manuais nas estantes do pensamento que ditasse o seu diagnóstico.

Tivesse este homem a sua parte de ser homem. Uma a uma, as pessoas desabitaram este lugar que nunca será promessa de ninguém, apenas será pousio para insectos e pequenos roedores que sobre as tábuas do chão protagonizam outros capítulos.
Pensa no búzio que lançou ao mar, na textura que lhe ficou gravada na palma e pensa no mar que recebeu o búzio como aquela mãe que recebe o seu filho nos braços logo após o parto.
Não existe vento a separar o amor, não convém recolher o gado antes do dia-ganho, não há possibilidade de habitar entre Marte e Saturno, mas há sempre uma espada afiada à sua espera que reluz antes de deitar. No pavilhão do seu ouvido sobra o eco das vítimas de uma guerra que uma grossa enciclopédia há-de registar: o amor.

Os teatros são sequências de uma vida, retalhos que já de si foram mal retalhados, imitando o real que ainda ontem o viu frente a frente com o absurdo.
Vê que são duas da manhã. Vê porque a mulher preta deu-lhe um sinal para subir. Os quartos do primero andar, que as escadas em caracol o hão-de levar, guardam confissões dos velhos malcriados, com vontades de almas espalhadas pelos tapetes, pelos lençois, no canto da nota de vinte.

Bebe o líquido que restava no copo, uma ardência faz de si sua cobaia e, inspira, toma o incenso do bar todo de uma vez. Um atlas nas suas mãos. É agora que os relógios vão parar, a cidade moveu-se e ninguém deu por nada, os animais meteram-se nas tocas e ele pressentiu.
A mulher preta, esse negra que tem batuque nas ancas - que eu diria que já pariu sete filhos - tão africana quanto a sua alma negra, tão impura quanto os seus olhos que não destiguem ilustração da verdadeira paisagem, lançou-lhe um beijo de longe que acabou por embater na pedra do silêncio.

Gritou por dentro como um velho sábio lhe ensinou. Apertou o coração para não se abalar e, quando ordenou as pernas para se levantarem, foi como arrebentasse todo o acordoamento de uma viola, caiu numa cegueira, como cai o amor quando se chega a casa tarde sem explicação, com perfumes de outras.
Lembra-se do primeiro olho que abriu mas não se lembra se foi o esquerdo ou o direito, lembra-se porque deixaram-no na praia, com os pés a roçar as águas frias, a linha do fundo era mais que perfeita, cada vez a chegar-se mais para si.

Foi a primeira vez que sonhou com peixes, com a profundeza das águas, com a naturalidade com que nos movemos debaixo de água, alcançando anémonas, brincando nos corais, vestido de escamas, interpretando búzios, aprendendo dialectos marítimos. Assim que acordou, após recebida a benção do sol como quem diz “podes ir”, juntou o corpo à alma, contou do cinco para trás e, quando chegou o momento, a tal luz que acompanha os séculos, foi casar ao mar; porque lá no mar, junto das embarcações afundadas, perto ou longe dos tesouros dos piratas (não interessa) o amor é como a lata de atum: o melhor está por dentro.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 01/05/2008 22:24  Atualizado: 01/05/2008 22:24
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: Não existe vento a separar o amor
Gostei Flávio, falas de amor, tema
pouco habitual em ti!

" O amor é como uma lata de atum: o melhor está por dentro", verdade, verdadinha, Flávio.

Beijo

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/05/2008 07:59  Atualizado: 02/05/2008 07:59
 Re: Não existe vento a separar o amor
Tanto para comentar e tão curto é o espaço. Um riquíssimo exerc+icio literário, do mais fino recorte. parabéns. Abraço

Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 06/05/2008 21:09  Atualizado: 06/05/2008 21:09
Colaborador
Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 Não existe vento a separar o amor para o flavio
Um dia havemos de escrever um texto de amor juntos :)

O amor é tão bonito e tu, eu não pensei dizer isto mas, tu escreves o amor tão bem =)