Poemas : 

sóleo

 
cãibras de sermos
a estrada de caim
dos nossos filhos

 
Autor
Benjamin Pó
 
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Enviado por Tópico
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Publicado: 15/03/2022 10:31  Atualizado: 30/03/2022 21:49
 Les Fleurs du Mal - Abel et Caïn -
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 18/03/2022 06:35  Atualizado: 01/04/2022 03:01
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 Re: sóleo
Estes poemas curtos, ou poemetos como podem ser denominados, têm desafios muito interessantes, pelo seu elevado grau de dificuldade.
Tinha um amigo na minha velha infância, que me dizia que falava pouco para errar pouco. Quando mais se escreve maior probabilidade de os erros irem surgindo, nem que seja na ortografia, por exemplo.
Na poesia, para mim é ao contrário.
Apesar de eu ter uma amiga que me diz que me destaco muito na forma de poemeto, porque depois, lá sai um ou dois versos “impoéticos” que estragam um conjunto que podia ser de grandeza superior até eles surgirem.

O peso que cada palavra tem em poemas muito curtos é muito grande.
Revolucionar a mente de alguém com oito a dez palavras não é tarefa fácil.

O escritor Pedro Sá um dia disse-me que adorava os poetas, porque segundo ele, eles tinham de apresentar todo um conjunto de regras que aprendemos (introdução, desenvolvimento e conclusão) em poucos versos. Fez uma comparação deste tipo, é como começar e acabar de fazer a casa na sala de jantar.

Se isto é verdade de quem escreve poesia, para quem escreve prosa, então o que dizer se o que se diz quase nem tem meio parágrafo? Ou pontuação?

Há alguns poetas aqui no Luso que o fazem muito bem. A MarySsantos é assustadora, por exemplo. Segundo a supracitada amiga, eu não me saio muito mal.
Com este autor é difícil dizer, uma vez que ele tem o toque de Midas.

Este “sóleo” começa por me intrigar precisamente no título.
Parece-me uma gralha em que se misturou duas palavras com sentidos não muito complementares:
Sol e Óleo.
O Sol aquece o óleo.
O óleo ameniza os efeitos do Sol na pele, por exemplo.
Sonoramente começa com um Só.
E acaba com um li-o.
Só li-o?

Depois lemos os 3 versos e não há nada disto. Boa.
Lá vou eu falar com deus, e o google diz-me que o sóleo afinal é o meu velho conhecido músculo solhar.
Para quem não sabe de anatomia, este é localizado na parte de trás da perna (entre o joelho e o pé), e tem particularidades poéticas bem interessantes.
Segundo os anatomistas, o Sóleo é o músculo responsável pelo equilíbrio. Impede o corpo de se desequilibrar para a frente permitindo o ortostatismo.
De que equilíbrio se referirá o sujeito poético?

Logo na primeira palavra do primeiro verso, há uma dor, e uma dor incapacitante.
Quem não se lembra de ver numa televisão a imagem de um jogador de futebol deitado no chão, quase lavado em lágrimas, com outro a segurar-lhe no pé numa posição de extensão esquisita?
As “...cãibras...” têm vários motivos, entre os quais a desidratação, a falta de sais minerais (como o s'ódio), e o excesso de exercício. Um dos principais músculo da panturrilha (gosto da palavra) afectados numa é, o nosso amigo, “sóleo...”.
O músculo em questão tem ainda a particularidade de se localizar sob o tendão de Aquiles, símbolo clássico para a fragilidade.
Isto é, está abaixo do que nos é frágil e permite o equilíbrio?!

Estará o título a doer? O que causará a dor?

“...de sermos...” Estranha a quebra de verso num verbo.
Os verbos transitivos têm beleza de nos transportar.
E sendo o verbo ser aquilo que nos define (e não o ter ou o estar) acho que importa repararmos no verso seguinte, que o verbo antecede:

“...a estrada de Caim...”

Este é o verso deste poema.
Segundo a mitologia Judaico-cristã Caim foi o primeiro filho de Adão e Eva (e da serpente?).
O fruto da maçã. Da queda em tentação do casal, criado por Jeová (ou Deus) para viver no paraíso.
Ora segundo o Génesis, Caim era humano.
Quando o seu irmão Abel (engraçado que em inglês able, ligeiramente parecido, é o mesmo que hábil ou capaz) nasceu, apesar de ter nascido com a capacidade para vir a ser, como os restantes familiares, centenário (lol), aquilo mexeu com Caim.
Quem é Pai de dois sabe que o bébé é meio-brinquedo nas mãos do primogénito, por muito cuidado que tenhamos. Como será um brinquedo quando o bébé deixar o berço, e começar a andar (e a correr). Somos todos brinquedos uns dos outros, no fundo (a não ser que a diferença de idades seja demasiado grande).
Caído em tentação por inveja, Caim foi o primeiro assassino da história, matando Abel com uma pedra. Foi amaldiçoado por Deus, como os pais tinham sido a partir do Éden, assim como todos os seus descendentes, à má fama e à eternidade.
Há referências ao sinal de Caim e o vampirismo.
Aproveitou para ter proveito e tornou-se violento e polígamo, seguindo o mal.

Ora a “...estrada de Caim...” é essa predisposição para o mal que há em cada Homem. Sendo que o “...estrada...” tem um óbvio sentido metafórico de caminho de vida, progressão.

Tem graça que é crido que a descendência de Caim morreu no dilúvio do episódio da Arca de Noé, não é?

O último verso é o mais amargo, pois é muito ingrato termos a noção que se toda a gente é, ou pode ser, assim, significa que os nossos entes mais queridos (os filhos e os seus filhos) também assim serão...
Seremos desequilibrados, sem violência?

Referências finais à forma:
Este poema tem 10 palavras. É engraçado que o 10 é o primeiro número com dois algarismos.
Será Caim o 1 e Abel o 0?
Além disso tem todo o formato dum Haikai canónico. Métrica 5-7-5, mas com um sentido metafórico tão lato não pode ser considerado, que esses são mais literais.

Muito obrigado por mais uma pérola para o meu colar...