1. À mulher e ao filho de Yuri
Deixou mais uns tijolos sob reboco,
uma casa, talvez um apartamento,
tudo o que tinha em rublos ao vento
e tudo era nada, pensou um pouco.
O sangue deixou-o possesso, louco,
capaz de enfrentar a frente e o cento,
mas, de mulher e filho no pensamento,
trocava a sua vida, e deixava o troco.
Há tantos nomes em ucraniano
como em russo, ou português;
em todos eles há femininos, e plural.
Venham todos conhecer o Lusitano,
como, certo dia, um visigodo fez,
venham conhecer o nosso Portugal
2. Outro Olhar a disparar
Disparam flashes e luzes brancas;
algumas mulheres capazes e mancas
disparam somente fel e impropérios,
contra um dos maiores impérios.
Caras duras frias cínicas e francas
alimentam as câmaras - alavancas;
ou escrevem uns versos rogérios,
que nada mudam, por mais sérios.
Ficar a ver dói, à porta do hospital,
em vez da ambulância, destroços,
em vez de equipas médicas, bombas...
A face mais negra da guerra, do mal,
imaginar que podiam ser os nossos
a defender sua casa, de facas rombas.
3. Reserva Territorial
Eu até irei à guerra que sei ir perder
mostrar os dentes a, em vão, morder;
os pés, o tronco, o fígado, os braços,
de armas ao léu apontadas a espaços.
Se os meus pais, os vizinhos sem poder,
forem arrombados do sorrir e do viver,
que fazer? Se em mim vejo todos' traços
findos, acabados; vou à guerra dos aços!
Será uma escolha minha? Tenho escolha?
Penso, sem escolha alguma, que não.
E saio à rua, envergonhado, da reserva.
Andamos todos felizes, numa frágil bolha,
que rebenta, à bomba mesmo no coração.
E esse não, que é ir à guerra, me enerva!
4. Insubmisso
Já baixei a cabeça muitas vezes,
é um mal de muitos portugueses,
mas se levanto os cornos, é alto
e para o baile, isto é um assalto!
Já disse que sim, durante meses
a fio, a abusadores com fezes.
Mas o meu, não é azul cobalto
e se os meus gritam, não falto.
Tenho um lado que ama o crime,
que guardo fundo no meu sorriso,
que escondo com receio e medo.
É revolta fria, ácida, sublime
de animal que perdeu o juízo,
que se deita tarde e acorda cedo.
5. Cheque ao Czar
Comecemos com as peças pretas,
o jogo está viciado, como as setas
com um alvo do tamanho dum país.
O mundo, guerra nuclear por um triz.
A rainha nova, rússia é das prediletas,
num jogo sem mãos, baionetas,
só peões armados em povo infeliz,
uns cavalos, torres, bispos, de giz.
Há um Rei, sem que haja segundo,
há um tabuleiro gasto e partido,
um relógio que cronometra a hora.
É mandar os putinhos do mundo
para a Sibéria. Dela terem saído
foi o erro que pagamos, agora...
6. Papoila é nome de guerra, e eu sou Cravo
Custa dar luta
a filhos da puta,
papoila é nome
da minha fome.
Coisa enxuta,
fundo de gruta,
facas, o pome
não se come.
Dar remédios,
bens alimentares,
é o que segue.
Que os assédios
e os odiares
não há quem negue...
Nota: "Papoila é nome de Guerra" tem direitos de autor, é o título de um poema fortíssimo dum poeta que se auto-intítula Namastibet, a ele o meu obrigado pela inspiração
7. KGB
Venha de lá um sol vindo de leste,
venha de lá de Buda e de Peste,
venha um pouco de luz, e caridade
a toda a vida, sem idade.
Até que, nem pedra sobre pedra reste,
haja paz e amor, um dia disseste,
tudo em vão e sem propriedade.
Guerra e fome, é a realidade.
Uma nova Rússia imperial
com czarinas, chega de moscovo
e todo mundo da NATO, as vê;
disfarçadas de novas forças do mal,
para acabar com a face dum povo,
venha lá, de novo, o KGB.
8. Em Odessa
Em Odessa há uma vergonha
escondida, que cá ninguém sonha:
Ucranianas à venda na rua
numa montra, suja e sua.
Como o vinho de borgonha,
que sabe a mel e a peçonha,
que em rublos euros se continua,
virgem, velha, minha e tua.
Que nenhum povo está isento
da mais velha profissão do mundo,
e da máfia que traz cada chulo.
Mas Odessa será feita de vento,
com o perfume nauseabundo
a cobardia que, hoje, engulo.
9. Sem Solvente
Deixaram um soluto solto ao ar,
e duma faísca feita foi-se queimar;
queimaram as palavras, como a paz,
o amor, sob destroços d'hospitais jaz.
Começaram a vida da frente para trás,
de trás para a frente ninguém a traz;
a maternidade, sem bebés a chorar,
é dum silêncio difícil de calar.
O fim dos poemas, fim da poesia,
tem o adjectivo imoral de guerra,
eu luto cheio de ira com sonetos.
Faremos mais uma outra guerra fria,
que os russos voltem pra sua terra.
Eu luto, cheio de ira, com sonetos!
10. o caos perfeito
novecentas e noventa e nove,
as palavras contadas ao segundo,
para uma imagem de paz no mundo,
num tempo parado, que não se move
uma, para que o amor se renove,
ou mais, para que seja mais profundo,
mil, a conta certa, o ar moribundo.
Só novecentas noventa e nove,
as palavras para descrever o rosto
que fazes ao rir, duma graça que disse
sem piada, e tanta falta de jeito.
Imagens que ficam, pedra e desgosto
espalhadas no chão, sobre a meninice;
o caos perfeito.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu outro eu, o cheiramázedo.
Como devem estar recordados, ele só sabe comentar na forma de soneto e anda muito activo, com esta história da guerra.
Era bom que não houvessem mais...